Transição não é uma questão casual, precisamos falar sobre aqueles que se arrependem

A alta visibilidade de pessoas que se identificam como trans, como Caitlyn Jenner e Chaz Bono, tornou o transgenderismo mais aceitável para a sociedade, mas estamos falhando em fazer perguntas importantes sobre essa tendência.

HNEB
Hormônio não é brinquedo
10 min readMar 15, 2018

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Por Thain Parnell

Não há dúvida de que o “gênero” está tendo seu momento de fama. No mesmo ano em que Bruce Jenner se apresentou como Caitlyn, através de uma feira da Vanity Fair, Miley Cyrus anunciou que o gênero acabou e, no mês passado, a Vogue apresentou a modelo Gigi Hadid e seu namorado Zayn Malik na capa, alegando que os dois eram representantes de uma nova geração que abraça a “fluidez de gênero”. Embora, na superfície, possa parecer que estamos rompendo com os estereótipos de gênero, há algumas consequências preocupantes para a nova tendência transgênero.

Cantora Miley Cyrus usa camisa com a frase “O gênero acabou”

Agora é legal “borrar as linhas” entre os sexos: desde músicos como São Vicente e Grimes, até atrizes como Ruby Rose, a lista de celebridades que afirmam não se inscrever nos códigos tradicionais de gênero da sociedade são infinitas e parecem estar crescendo diariamente . E não são apenas as celebridades — pessoas comuns, desde crianças em idade escolar até chefes executivos estão reconsiderando o significado de gênero e decidindo que querem escapar do chamado “binarismo de gênero”. Muitas vezes, isso significa transicionar ou se assumir “trans”.

Mas este novo entusiasmo por todas as coisas trans deve vir com uma advertência, especialmente quando crianças pequenas e impressionáveis ​​estão fazendo mudanças graves e potencialmente irreversíveis em seus corpos, das quais um dia poderão se arrepender. Você não se converte em um fundamentalista de direta ou “anti-trans” por se preocupar que a decisão de transicionar possa ser alimentada pelo contágio social ou por atitudes misóginas da sociedade.

Eu falo por experiência própria. Eu sou uma pessoa trans que tem grandes questões sobre minha própria transição.

Nascida biologicamente mulher, eu sempre tive problemas para reconciliar meu gênero com minha identidade e expressão pessoal. Simplificando, nunca me senti confortável com as expectativas da sociedade sobre o que uma mulher deveria ser. Eu era alta, opinativa, não domesticada, uma gamer, nerd e o que poderia ser chamado de tomboy [mulher “masculina”] — muito mais confortável com um jeans e uma camiseta do que com um vestido ou saia. Eu sempre me senti limitada pelo gênero que me foi imposto no nascimento. E ainda havia o fato de eu gostar de garotas. Os papéis sociais de gênero diziam que eu não era natural por ser quem eu era, fazendo as coisas do jeito que eu fazia, querendo o que eu queria, sendo atraída por quem eu estava atraída e me vestindo do jeito que eu gostava.

Então, em outubro de 2013, depois de passar um ano investigando o processo de transição, decidi “sair do armário” para minha parceira, amigos e família. Eu tinha 28 anos. Passei os dois anos seguintes vivendo e me apresentando como homem antes de decidir tomar o próximo passo dramático — a terapia hormonal.

Neste ponto, eu resolvi consultar profissionais. Depois de uma consulta com o médico da família, fui enviada à Clínica de Identidade de Gênero de London, onde, depois de três consultas com um psiquiatra, fui oficialmente diagnosticada com Transtorno de Identidade de Gênero.

Com o meu diagnóstico oficial e minha identidade trans confirmados, pensei que qualquer dúvida que eu tivesse se dissiparia. Mas em vez de experimentar uma sensação de resolução para a minha turbulência interior, tudo o que eu tinha eram perguntas.

Uma vez que comecei a terapia hormonal, as mudanças aconteceram rapidamente. Eu fiquei muito mais musculosa quando minha gordura corporal começou a se redistribuir. Minha mandíbula tornou-se mais forte, mais quadrada e mais definida, e brotou pêlos em todos os lugares do meu corpo. Depois de seis meses, minha voz ficou mais grave. Eu estava empolgada em me tornar o homem que eu pensava que era.

Mas depois de um ano tomando testosterona eu ainda não era socialmente percebida como homem, me dei conta que a mudança que eu realmente estava procurando — validação e auto aceitação — ainda não era minha, e comecei a me perguntar por quê.

De certa forma, eu me senti novamente fortalecida e esperançosa. Eu mal podia esperar pelo dia em que eu iria falar e ser ouvida, em vez de ser demitida. Que os homens parariam de olhar minha bunda quando eu estivesse fazendo compras. Eu queria que as pessoas me tratassem com o respeito automático que me dariam caso eu fosse biologicamente homem. Mas eu ainda não me sentia autenticamente “eu”. Sentia como se, de alguma forma, eu estivesse desistindo de uma parte de mim mesma.

Tarde da noite eu chorava no meu travesseiro pela a mulher ferida que eu tinha rejeitado.

Me dar conta de que nunca seria aceitável para mim ser a pessoa “masculina” que sou, a menos que eu aparentasse ser um homem, era uma tarefa difícil de processar. Depois de um tempo, eu decidi fazer uma pausa na testosterona injetável, pois desenvolvi pressão alta (algo que nunca antes tinha acontecido comigo). Mas continuei a lutar contra a incapacidade da sociedade de me tolerar como uma mulher masculina e não consegui me reconciliar com o que entendia ser minha “identidade de gênero”. Sentia que se eu fosse vista como uma mulher, não poderia ser eu mesma. E então voltei a usar hormônios masculinos (embora desde então tenha mudado para uma dose baixa de testosterona em gel).

Eu ainda não tenho passibilidade. [ser lido pelas demais pessoas como alguém do sexo com o qual se “identifica”]

As pessoas me percebem como mulher porque a biologia determina certas características que nos marcam, como características faciais, estrutura óssea, tamanho e altura. Já que eu não “passo” [por homem], também não me encaixo na descrição do que é ser um homem ou uma mulher na sociedade.

Também não me sinto como uma mulher ou como um homem — pelo menos não com base nos entendimentos sociais atuais dessas categorias. Em um mundo perfeito, pessoas como eu seriam aceitas pelo que são — mulheres que se comportam ou parecem “masculinas”. Em um mundo perfeito, as mulheres seriam apreciadas, respeitadas e admiradas tanto quanto os homens.

Mas como não vivemos nesse mundo, sinto que preciso parecer com um homem para obter respeito, para poder me expressar e usar as roupas e os penteados que eu prefiro.

Sei que não é possível mudar meu sexo — sempre serei uma mulher, biologicamente. Não estou mais envergonhada — só triste — porque a sociedade não me aceitará sendo quem eu sou.

Cheguei à conclusão de que minha decisão de transicionar se deveu, em parte, à misoginia em nossa sociedade e aos subsequentes sentimentos de desconforto que a misoginia gerou em mim.

Enquanto algumas pessoas que decidem embarcar no longo e árduo processo de transição dizem que estão felizes com sua decisão, para muitas outras, não é tão simples assim.

Eu falei com minha amiga Michelle, que nasceu mulher, mas se assumiu como homem trans quando tinha 24 anos, depois de decidir que seu gênero não combinava com como ela queria se expressar. Como eu, Michelle foi diagnosticada com Transtorno de Identidade de Gênero e iniciou sua terapia com testosterona, com o objetivo de conseguir passibilidade como homem.

Quando ela chegou aos trinta anos, depois de ter tomado testosterona por dois anos, Michelle começou a ter sérias dúvidas sobre o que estava fazendo. Ela estava fazendo terapia, trabalhando problemas de abuso sexual e auto-estima. Uma vez que ela começou a processar seus sentimentos e experiências, percebeu que havia tomado a decisão equivocada ao transicionar. Hoje, ela vive como mulher e admite que, mesmo no início de sua transição, teve dúvidas.

Michelle me disse:

“Eu sempre tive problemas de imagem e de baixa auto-estima acentuados, mas quando comecei a desenvolver acne rosácea aos meus vinte e poucos anos, foi quando minha confiança realmente começou a espiralar. Além disso, sendo de origem Mediterrânea, eu tinha os pelos do corpo e rosto bem escuros, e pode soar superficial, mas eu simplesmente não me sentia feminina. Das pessoas ao meu redor, recebi a mensagem de que, para ser aceita como mulher nesta sociedade, você tem que ter uma certa aparência, e eu simplesmente não tinha. Senti que as pessoas não me tratavam com respeito por causa da minha aparência, e eu entendia que isso acontecia principalmente por causa do meu sexo.

Um dia, encontrei um artigo na internet sobre transexuais FTM [de mulher para homem], e senti como se alguém tivesse acendido uma luz dentro do meu cérebro. Isso me deu esperança de conseguir poder e respeito, e também me forneceu uma maneira de escapar do desespero, da depressão e da humilhação que eu sentia por não ser atrativa”.

A imagem corporal é um grande problema para meninas e mulheres — a pressão para estar a altura dos ideais hiper feminilizados parece maior agora do que há algumas décadas atrás. Em uma pesquisa de imagens corporais com mais de 10.500 mulheres e meninas realizadas pela Dove em 2016, sete em cada 10 relataram deixar de comer para parecerem mais magras, 89% das mulheres australianas admitiram que cancelariam encontros ou compromissos laborais por causa da aparência, e apenas 20% das mulheres do Reino Unido disseram se sentir bem com suas imagens.

Quando eu estava crescendo, nós tínhamos KD Lang, Courtney Love e Kathleen Hanna como modelos; agora as jovens têm Miley Cyrus e Rita Ora, que podem ser talentosas, mas são indiscutivelmente hipersexualizadas de uma maneira particularmente feminina que não vimos na década de 90.

A geração Y sofre um aumento preocupante de problemas relacionados à imagem corporal, com jovens expressando muito mais repulsa por seus corpos do que na época em que eu estava crescendo. Há vinte anos, a maioria das modelos pesava 8% menos do que a média das mulheres americanas. Agora, elas pesam 23% menos. Os transtornos alimentares aumentaram mais de 400% desde 1970. Apenas 5% das mulheres nos EUA têm o tipo de corpo popularmente retratado na publicidade de hoje. A autolesão, o suicídio e a depressão estão aumentando, assim como a anorexia e a bulimia. Meninas cada vez mais jovens desejam cirurgia plástica para esculpir seus rostos e corpos de acordo com os ideais de beleza vigentes. Uma pesquisa da BBC encontrou que 45% das mulheres com menos de 35 anos estão pensando em fazer cirurgia estética.

Isso pode ser, em parte, devido a uma reação misógina contra a percepção do progresso das mulheres na vida pública. À medida que as mulheres se tornam mais visíveis na política, nos esportes, na cultura e nas artes, aumenta a ira misógina, assim como o desejo de punir as mulheres por seu sucesso. A recente explosão de activistas pelos direitos dos homens (Masculinistas) dá origem a essa raiva, que às vezes pode culminar em violência fatal, e vemos sites como o Breitbart publicar artigos do tipo: “Você preferiria que seu filho tivesse feminismo ou câncer?”

O aumento da cultura pornográfica e a chamada “vingança pornográfica” (revenge porn) é outro exemplo claro disso — de fato, 90% das vítimas de vingança pornográfica são mulheres.

A alta visibilidade de pessoas identificadas como transgênero, como Caitlyn Jenner e Chaz Bono, fez com que a sociedade aceitasse mais o transgenerismo, mas estamos falhando em fazer perguntas importantes sobre essa tendência.

Como as pessoas estão fazendo a transição cada vez mais cedo, é muito mais difícil saber quem poderá se arrepender dessas sérias decisões no fututo, quando talvez já seja tarde demais.

Há questões mais profundas que precisamos examinar e perguntas que precisamos fazer.

Por que uma garota deve se sentir como se valesse menos (ou talvez como se nem fosse mesmo uma garota) por não gostar de usar vestidos? Por que um menino deve se sentir envergonhado por gostar de balé ou querer se expressar de uma maneira “feminina”? Por que ainda me sinto inadequada por não me parecer com os rostos e corpos femininos das capas de revista? Por que ainda sinto uma onda de medo quando saio de casa sem raspar minhas axilas, preocupada que alguém me veja como mulher e me olhe ou me assedie?

Não é verdade que a transição é simplesmente uma escolha pessoal, considerando que mulheres e homens são punidos severamente se por não se adequarem às normas de gênero.

Embora a tendência da transição pareça estar conectada ao desejo das pessoas de escapar da misoginia, homofobia e normas de gênero restritivas que existem dentro da nossa sociedade, está inextricavelmente ligada a outras questões, como baixa autoestima e depressão. Sari Reisner, um pesquisador da Escola de Medicina de Harvard e do Hospital Infantil de Boston, descobriu que a taxa de transtornos psiquiátricos e a dependência de substâncias entre mulheres trans era de 1,7 a 3,6 vezes maior do que a da população geral.

Essas questões são complexas, mas a natureza irreversível dos procedimentos e das terapias hormonais que as pessoas devem realizar se decidirem fazer uma transição física completa significa que devemos levar o assunto a sério.

A testosterona é um hormônio extremamente poderoso que induz mudanças irreversíveis ​​em um corpo biológico feminino, incluindo crescimento do clitóris, calvície masculina e atrofia dos ovários, o que causa infertilidade. Quando tomado por homens biológicos, o estrogênio causa mudanças definitivas ao longo do tempo e pode levar a trombose, coagulação do sangue, infertilidade e disfunção sexual. Além disso, devemos considerar as mudanças causadas pelos poderosos anti andrógenos que muitos transexuais do sexo masculino tomam, como o Lupron, e os efeitos permanentes de cirurgias como mastectomias e orquiectomias.

As crianças de hoje estão fazendo a transição quando são ainda muito jovens — mais de 80 crianças de até quatro anos estão atualmente buscando tratamento para o transtorno de identidade de gênero apenas no Reino Unido. Crianças e adolescentes estão tomando decisões sérias para alterar cirurgicamente e hormonalmente seus corpos — decisões que comprometerão sua capacidade futura de ter filhos — muitas vezes antes de passarem pela puberdade.

Talvez Miley Cyrus tenha razão. O gênero realmente deveria estar “acabado”.

Se nós, como sociedade, pudermos evoluir ao ponto do gênero realmente ser irrelevante, onde se aceite a aparência e expressão do chamado homem “feminino” ou mulher “masculina”, e onde o comportamento não seja condicionado pelos estereótipos de gênero, nós precisamos ser trans?

O caminho a seguir é certamente o de um mundo em que as mulheres e os homens não devam viver de acordo com ideais superficiais e irrealistas. E, talvez, nesse mundo completamente diferente e corajoso, a crescente e preocupante porcentagem daqueles que transicionam e depois se arrependam, caia para zero.

Thain Parnell é uma blogueira feminista que atualmente está escrevendo um livro sobre o motivo pelo qual o feminismo radical é uma alternativa mais saudável para as mulheres e pessoas que se identificam como transgênero.

Texto original: http://www.feministcurrent.com/2017/08/05/transition-no-casual-matter-need-talk-regret/

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