Aqueles não foram os últimos dias da vida de Ulli Lust

Hoje é O Último Dia do Resto da Sua Vida traz sem cortes a jornada real de uma adolescente que encara uma viagem cheia de imprevistos e más escolhas em uma Itália muito machista

Quadrinhas
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7 min readAug 22, 2018

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Eu estava preparando a minha primeira viagem sozinha quando comecei a ler Hoje é o Último Dia do Resto da Sua Vida (Martins Fontes), da austríaca Ulli Lust. Quase mudei de ideia. Em mais de 400 páginas a autora e ilustradora narra a viagem que fez da Áustria para a Sicília em 1984. Sexo, drogas no melhor estilo rock’n’roll. A história traz passagens pela cadeia, tempo ruim, noites na rua, novas (e nem tão boas amizades), doses de humor, generosidade e traição. Some tudo isso ao fato de ela ser uma mulher e estar em um lugar muito machista. Pois é.

Não é uma leitura fácil, pois como mulher você de fato se coloca no lugar da personagem. A melhor parte, lendo outras entrevistas da autora, é que de alguma forma Ulli soube digerir toda essa jornada. Nem todos conseguem. E não que ela não tenha saído ilesa. É de fato uma jornada transformadora em todos os aspectos. Hoje ela diz que relê pouco a HQ, acontece mais quando faz leituras em público e que “é sempre uma experiência agradável”.

Gosto particularmente quando a autora desenha os momentos de solidão e angústia da protagonista (ela mesma no caso), que chega a se sentir a um mero contorno no quadro até sumir… Nem sempre os desenhos conseguem imprimir essa sensação de vazio.

Além da história em si, Ulli mistura notas de antigos diários que ajudam a entender melhor o espírito da personagem e o seu desejo de abraçar o mundo ao seu modo — o que ela fez, bem no estilo adolescente rebelde — e também a compreender outras situações da viagem.

A autora nascida em Viena e que começou na carreira ilustrando livros infantis, hoje vive em Berlim e, além dos livros e reportagens, comanda um projeto de webcomics.

Abaixo, minha conversa com Ulli por e-mail sobre o livro e outros temas.

A AUTORA ULLI LUST

Compartilhar essa história teve algum tom político, uma necessidade emocional ou você apenas precisava contar uma história e lá estava essa viagem?

Ulli — A primeira motivação foi mundana: eu estava procurando material literário para uma escrever uma longa história e encontrei no meu próprio passado. A história parecia forte o suficiente para ser contada em um escopo generoso, porque fala sobre vários aspectos políticos relativos ao comportamento masculino e feminino em diferentes sociedades. Ao mesmo tempo, é uma viagem louca e vivaz para o inferno. Eu sabia que tinha que investir alguns anos da minha vida para fazer um longo livro, então o conteúdo deveria valer a pena. Na verdade, eu me diverti muito desenhando essa história. Não havia intenção educacional. A literatura, felizmente, não tem que assumir a tarefa de livros educativos.

No livro, mesmo nos momentos mais difíceis, parece que você não pensa nem por um segundo em voltar para casa. Por que era tão importante terminar essa viagem, fazer a jornada completa?

Ulli — É uma pergunta engraçada que me fazem com frequência e eu me surpreendo. Há uma produtora escrevendo um roteiro para uma adaptação cinematográfica do quadrinho. Eles queriam escrever uma cena em que a menina — em um momento desesperado na Sicília — encontra um orelhão e disca o número de seus pais. A voz da mãe responde, e a menina desliga o telefone. Fiquei furiosa com aquela cena. Os roteiristas insistiram que o público se perguntaria o tempo todo: “Por que essa garota não entra no próximo trem para casa ou chama seus pais para ajudar?”. A verdade é que a ideia nunca veio à minha mente. Eu não estava em uma simples viagem de férias, era parte de uma mudança mais existencial de ser a menina bem-comportada a uma adulta determinada, com a mente aberta. Eu estava procurando aventuras e consegui.

Minha autoimagem foi inspirada pela literatura, pelo modelo comum da clássica “jornada do herói”, que envolve um herói que busca uma aventura, e em uma crise decisiva ele vence e em seguida volta para casa transformado. Mas, pergunte a si mesmo: se o herói de Hoje é … fosse um homem, essa pergunta viria à sua mente? Isso não seria ridículo? É ótimo que eu possa ter fraquezas porque sou uma mulher. Mas é uma merda que rastejar de volta para uma casa segura pareça ser o comportamento mais compreensível das mulheres. É uma subestimação da força feminina. Mas eu não quero me gabar, eu sei. Tive muita sorte em não conhecer pessoas realmente malvadas.

Página de “Hoje é o Último Dia do Resto da Sua Vida”. Talvez aqui nesse trecho a personagem tenha considerado voltar para casa. Mas mudou de ideia em segundos.

Você reencontrou algum dos personagens após a publicação do livro e visitou a Itália de novo?

Ulli — No final do livro menciono que vi Edi em um show em Viena. Mas desde então nunca mais ouvi falar dela ou de outra pessoa do livro. Fora meus pais, claro. E visitei a Itália várias vezes. Foi sempre um delicioso e uma experiência amigável. A Itália mudou e eu também, fiquei mais velha e pareço mais respeitável.

Ulli e sua amiga-nem-tão-amiga Edi (de cabelos curtos)

Muitos livros sobre personagens femininas são escritos por homens. Mas hoje temos mais mulheres fazendo HQs e, mesmo assim, em 2015 o festival Angoulême (um dos mais importantes de quadrinhos da Europa e para o qual a HQ de Ulli foi indicada antes) não listou uma mulher entre os 30 concorrentes do grande prêmio.

Ulli — Concordo com a sua primeira frase, e estou feliz com cada nova autora com protagonistas femininas. Os quadrinhos têm sido dominados pelos homens há muito tempo, a maioria das histórias foram escritas para um público masculino típico (exceto no Japão). Desenhos animados femininos e histórias femininas eram um fenômeno raro nas cenas ocidentais de quadrinhos. Mas estamos recebendo mais. E graças à ascensão do formato de graphic novels existe um público novo e crescente, misturado e de todas as idades. A discussão em Angouleme foi sobre artistas com toda uma obra artística. Há muitos homens trabalhando há anos e com uma produção impressionante. É difícil nomear cartunistas do sexo feminino com o mesmo impacto porque a maioria é jovem e começou há alguns anos. Vamos falar sobre o assunto em dez anos. Hoje Marjanne Satrapi poderia ser nomeada, mas ela prefere fazer filmes hoje em dia. Alison Bechdel seria minha escolha.

Você tem um projeto antigo de webcomics, o Eletrocomics. Como ele funciona e o que te atrai mais neste formato de publicação?

Ulli — De vez em quando eu publico um novo e-book no Electrocomics. Agora estou esperando por um grande trabalho de Åsa Grennvall [já está lá]. Embora seja de graça, eu quero manter a seleção de quem publica pequena e preciosa. Qualquer pessoa pode se inscrever. Gosto webcomics por causa de sua acessibilidade. É ótimo para redes e manter contato. Mas, pela experiência, as pessoas levam o meu trabalho a sério quando eles lêem impresso em papel. E para mim é mais fácil ganhar dinheiro com impressão do que com obras digitais. Como artista eu trabalho com todos esses formatos diferentes: iPad, iPhone, PC… você nunca sabe em qual dispositivo o leitor lê seu quadrinho. É muito mais divertido projetar um layout perfeito para um determinado tamanho. A versão impressa fica para sempre e também é um belo objeto.

Trecho em que Ulli lida mais uma vez com comportamentos machista de seu parceiro.

Minha luta por respeito era inútil. Isso ficou claro com as discussões geradas na Sicília pelo romance Eu Queria Usar Calças, publicado cinco anos depois, em 1989. Lara Cardella, a autora de 19 anos, nascida em Licata, denunciou o mundo machista do sul da Itália. Sua exigência por liberdade e autorrealização era representada pelo desejo de usar calça. Por causa desse livro, o pai da autora (um corretor de seguros) perdeu seus clientes, sua mãe (enfermeira) foi afastada do serviço e sua irmã teve que trocar de escola. A própria Laura Cardella foi difamada e ameaçada. Nas suas memórias, a autora escreve: “Mulher é esposa, mulher é mãe, mas mulher não é uma pessoa real. Havia uma parede entre ser mulher e ser pessoa.

Nota da autora ao final do livro sobre a cena acima.

Em 2014, Hoje é… foi indicada ao Eisner Award (o Oscar do quadrinho) na categoria de melhor não-ficção. A HQ recebeu o prêmio revelação do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, em 2011, e o Ignatz Award de melhor graphic novel, em 2013. Até agora este é o único trabalho de Ulli publicado no Brasil.

OUTRAS PUBLICAÇÕES DE ULLI LUST

Fashionvictims, Trendverächter (2008) — coleção de histórias curtas sobre a vida em Berlim (para quem lê alemão)

Histórias no Electrocomics: Children at War e Club Rerport

Mais livros no site da autora

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hqs e ilustrações feitas por mulheres e sobre elas (: