IA & UX: a inteligência artificial ao serviço da experiência

Sandra Mouta
Human-Centered Design Mindset
7 min readMay 22, 2021

Muitas vezes, a Inteligência Artificial é desenvolvida e percebida como uma solução concorrente à Inteligência Humana. Mas será que podem ser aliadas no desenho de melhores experiências?

Fonte: ThisIsEngineering, Pexels.

A inteligência artificial (IA) tem um potencial elevado para transformar a experiência humana, tal como a conhecemos atualmente. Pode facilitar ou automatizar a realização de algumas tarefas, melhorar a capacidade de recebermos informação e de responder às diferentes solicitações do ambiente e do contexto. No limite, através da expansão das capacidades cognitivas humanas, a IA pode aumentar a qualidade das nossas experiências para níveis de desempenho nunca alcançados.

Atualmente, este potencial já se materializou em realidade em diferentes domínios — já não se trata de um cenário de ficção científica. Os sistemas baseados em IA são uma tendência de mercado, foco de grande investimento das empresas e de atenção dos legisladores e reguladores. Existe um grande objetivo partilhado de tornar a tecnologia cada vez mais “inteligente”. Mas “mais inteligente” significará sempre ter mais sucesso? Ser mais adotada?

Para responder a estas questões, é necessária uma abordagem integrada ao produto, que inclua a perspetiva do utilizador. E, por este motivo, as equipas que desenvolvem a tecnologia, que recolhem e analisam os dados, que gerem o produto, que estudam o utilizador e que desenham as soluções devem trabalhar de forma articulada para encontrar um equilíbrio. Os processos centrados na experiência do utilizador (UX) são multidisciplinares e têm um papel significativo na adoção de sistemas inteligentes.

O problema é que, frequentemente, a maturidade dos processos de UX que já encontramos no desenvolvimento de muitos outros produtos e sistemas, não é aplicada quando o tema é IA. Talvez devido à baixa maturidade no domínio deste conhecimento nas empresas, à ineficaz articulação entre processos e equipas, à premência do mercado concorrencial, ou pelo foco intensamente tecnológico desta área.

Para melhorar o processo de desenvolvimento dos sistemas de IA, devemos garantir que projetamos soluções que respeitam os critérios para criar uma boa experiência. Como para qualquer outro produto, sistema ou solução, adotar uma abordagem human-centered contribuirá para atingir estes objetivos, ajudando-nos a:

  • Entender como a aceitação e o uso da IA ​​dependem da qualidade da experiência do utilizador (e compreender como devemos avaliar esta experiência) e da forma como o sistema inteligente é percebido e julgado pelo utilizador;
  • Descobrir como a tecnologia pode avançar para além do critério do “funciona” para “é fácil de usar”, “é útil”, “é confiável”, “é inteligível”, “acrescenta valor”, “é controlável”;
  • Determinar de que forma podemos permitir que os utilizadores otimizem as soluções através da interação, tornando a IA mais bem alinhada com as suas necessidades;
  • Perceber como os humanos podem ficar mais inteligentes, com recurso à IA.
Fonte: Andrea Piacquadio, Pexels.

Alguns estudos, revelam que as pessoas tendem a aplicar as mesmas normas gerais de interação humano-humano nas suas interações com sistemas inteligentes. No entanto, existem algumas diferenças na forma como as pessoas percecionam e reagem a estas tecnologias, e também nas pistas e nos critérios que usam para avaliar estas soluções.

A criação de relações de confiança ilustram bem estas diferenças. As pessoas julgam outras pessoas, principalmente, pelas suas intenções, e as máquinas pelos seus resultados — em caso de acidente, a máquina é julgada, sobretudo, pelo dano causado, enquanto a pessoa é julgada também pela sua intenção (ou não) em causar dano. Noutro exemplo, as pessoas atribuem um peso maior à competência percebida e às experiências passadas com outras pessoas para estabelecer uma relação de confiança. Por outro lado, para confiarem num sistema, as pessoas usam informação mais específica, focada na interação em concreto, nos dados que conseguem obter sobre o funcionamento do sistema e na precisão dos resultados obtidos.

Sabendo que existem diferentes aspetos que contribuem para a relação do utilizador com o produto, a adoção de tecnologias baseadas em sistemas inteligentes deve ser trabalhada durante o seu desenvolvimento, tendo em consideração estas dimensões. Se incluirmos o conhecimento sobre as pessoas, os contextos de uso, as expectativas e a forma como os utilizadores se relacionam com sistemas inteligentes, conseguimos delinear um conjunto de heurísticas, para orientar a criação de um produto baseado em IA (algumas mais generalizáveis e outras que terão que ser mais adaptadas à realidade dos projetos).

Transparência e Confiança

  • Deixar claro o que o sistema pode fazer. Incorporar informação direcionada. Responder em concreto quando o utilizador quiser saber mais sobre uma funcionalidade. Identificar a informação e os processos relevantes para as pessoas, trabalhar a sua transparência e explicitar o valor.
  • Comunicar o racional do sistema. Garantir que os utilizadores têm acesso aos aspetos fundamentais de funcionamento do sistema ou aos critérios utilizados para a recomendação ou tomada de decisão. Por exemplo, quando um sistema de ajuda à navegação seleciona um percurso, o utilizador deve ser informado sobre se a recomendação foi gerada com base no tempo ou no custo da viagem.
  • Mostrar informações relevantes em contexto. Fornecer informações ou sugerir ações com base em contextos de uso específicos. Por exemplo, quando um sistema de IA tem acesso ao calendário do utilizador, pode apresentar recursos contextuais, como sugerir um percurso ou uma paragem num dos restaurantes favoritos. Perceber uma vantagem ou acréscimo de valor contribui para o aumento de confiança no sistema, facilitando a sua adoção e promovendo a interação (incluindo a partilha de dados).
  • Desenvolver para a segurança e gerir o erro. Evitar comportamentos não intencionais do sistema que possam adicionar risco na sua utilização ou quebrar a confiança do utilizador. Contudo, o erro ocorre principalmente em sistemas que requerem processos de aprendizagem. Se experimento uma ‘app’ de música, é normal que o sistema falhe nalgumas recomendações. Nessa altura, o sistema deve continuar a trabalhar a transparência, apresentar o racional (ex. recomendou baseado numa preferência anterior) e incorporar oportunidades para melhoria (ex. criar oportunidade para feedback).

Controlo e Feedback

  • Facilitar a solicitação de serviços de IA quando necessário. Desambiguar funcionalidades e deixar claras as formas de aceder e interagir com as mesmas. Por exemplo, num sistema baseado em voz, o processo de invocação deve ser simples, mas suficientemente diferenciado para ignorar todas as outras vocalizações que não sejam dirigidas ao sistema.
  • Manter o utilizador informado sobre os estados e as alterações do sistema ao longo do tempo. Ao introduzir novos recursos no sistema, este deve informar o utilizador sobre quais são as novas funcionalidades, como pode usá-las e de que modo respondem às suas necessidades. Esta recomendação é tão mais importante, quanto mais complexa ou crítica é a tarefa; ou se implicar graus de automação superiores.
  • Aprender com o comportamento do utilizador. Por exemplo, reter e recuperar dados de interações recentes e oferecer conteúdo e recursos que acrescentem valor e que respondam diretamente às necessidades daquele utilizador em particular. Utilizar metodologias, como testes A/B, para recolher informação comportamental.
  • Criar ciclos de feedback. Explicar o comportamento do sistema aos seus utilizadores, manter a transparência dos processos e permitir o feedback. Quando existe incerteza relativamente a um comportamento do sistema, o utilizador deve conseguir explorar e compreender o que motivou determinada ação, quais as fontes de dados usadas ou qual o grau de certeza de determinada recomendação, e se possível, permitir que o utilizador contribua com informação.
  • Manter a possibilidade de controlo do utilizador. Em vez de uma IA que substitua os humanos, a tecnologia será mais adotada se conseguir comunicar como pode amplificar e aumentar as nossas capacidades. No final, o utilizador deve ter uma perceção de controlo e não ser apenas um espetador. Isso significa ser capaz de intervir, reverter ações indesejadas e recompensar ações adequadas. Estimular um ambiente colaborativo com diferentes níveis de dependência.
  • Identificar as funcionalidades a automatizar. Nem tudo deve ser automatizado. A maioria das tarefas pode ter alguns passos que são adequadas para IA e outros que devem ser deixados para os utilizadores. As razões para não usar IA podem relacionar-se com tarefas que requerem competências exclusivas dos humanos (ex. compreender emoções ou motivações, fornecer dignidade), tarefas com um valor intrínseco ao processo manual (ex. um nível de expertise específico), tarefas que requerem avaliação subjetiva (ex. decisões éticas ou morais), ou tarefas com outro tipo de consequências a um nível mais abrangente, até mesmo comunitário ou societal.

Estas recomendações para design de soluções com IA contribuem não só para a definição iterativa da solução, como também para definir critérios mais relevantes para avaliar a experiência do utilizador e para validar os produtos finais.

O novo mundo da IA ​ precisa de uma abordagem de UX igualmente nova, que consiga dar resposta a todo o potencial que as novas tecnologias oferecem. E, neste processo, haverá lugar para a automatização de algumas tarefas atualmente realizadas pelos profissionais de UX, mas também para abrir portas a oportunidades de mudança, que devem ser aproveitadas:

  • Trazer as pessoas para o centro do desenvolvimento, atualizando o conhecimento sobre os problemas a resolver, as suas necessidades, as barreiras que encontram e o que estão dispostas a abdicar na realização das suas tarefas.
  • Compreender as novas jornadas de utilização, os diferentes pontos tangíveis e intangíveis, as diferentes alternativas, e identificar os momentos-chave para trabalhar, por exemplo, o controlo em relação à automação do sistema, os momentos em que a confiança deve ser consolidada ou em que a exploração deve ser promovida.
  • Colaborar nos processos de modelação, em temas como a amostragem, a representatividade, a identificação e a categorização dos dados.
  • Contribuir para alimentar os modelos de aprendizagem da IA, através de técnicas participativas e de treino dos algoritmos. Os analistas comportamentais e UX researchers são treinados para medir e avaliar construtos, muitos deles fundamentais como inputs dos modelos computacionais ou para testar os seus resultados.
  • Recolher e interpretar o feedback dos utilizadores e extrair padrões comportamentais, a partir dos dados analíticos provenientes da interação ou recolha de informação direta junto dos utilizadores.
  • Planear a estratégia de conteúdos e escrever para a experiência do utilizador, trabalhando critérios fundamentais para a adoção dos sistemas inteligentes, como a transparência, a seleção dos processos relevantes, a confiança, a (in)certeza e o controlo do utilizador.

Uma abordagem human-centered aplicada à IA será o caminho para aprimorar os dados, otimizar as soluções, personalizar as interações e deixar que a experiência do utilizador valorize e venda a tecnologia.

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Sandra Mouta
Human-Centered Design Mindset

UX Researcher | Cognitive Psychologist (PhD) | Passionate about Human Factors and Human-centered Design | Head of Training @Tangível Academy. Based in Portugal.