Qual é o valor do estudo etnográfico em projetos de Human-Centered Design?

Kika Barreto
Human-Centered Design Mindset
8 min readAug 12, 2020
A man standing in the subway.
Observar humanos em transportes públicos é um clássico 👀 Fonte: Mendadtgt, Pexels

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A abordagem Human-Centered Design (HCD)

Human-Centered Design (design centrado no ser humano) é uma abordagem que coloca as necessidades das pessoas no centro do processo de tomada de decisão. A ideia essencial é que devem ser os sistemas a adaptar-se às necessidades dos seres humanos, e não os seres humanos a moldar-se aos requisitos técnicos dos sistemas. Por isso, antes de desenhar uma solução para um grupo de pessoas, devemos mergulhar no delicado trabalho de compreender as suas perspetivas, expectativas e limitações.

Existem diversas ferramentas que podem ajudar-nos a atingir esse objetivo. [1] Uma delas é o estudo etnográfico, oriundo das ciências sociais e, mais particularmente, da Antropologia Cultural. Embora na prática mais clássica se utilizem estas técnicas exclusivamente para estudar “sociedades tradicionais”, antropólogos contemporâneos acreditam na importância de examinar também os rituais e valores das “tribos modernas” — consumidores, utilizadores, clientes. Nos últimos anos, este tipo de estudo tem migrado para fora da academia e conquistado notoriedade em práticas de design e customer experience. [2]

No entanto, embora se tenha tornado uma buzzword, ainda existe muita incompreensão sobre as implicações de realizar um estudo etnográfico, bem como o lugar que o mesmo pode ocupar em projetos de Human-Centered Design.

O que é um estudo etnográfico?

“Etnografia — do grego έθνος, ethno — nação, povo e γράφειν, graphein — escrever.”

Etimologicamente, “etnografia” significa “escrever sobre um povo”. Na prática, trata-se da “descrição científica dos costumes de povos e culturas individuais” [3]. Isto é, um retrato dos rituais e valores de um determinado grupo humano.

Uma etnografia é um estudo qualitativo que busca compreender e descrever as práticas sociais e culturais de uma comunidade.

Uma abordagem etnográfica, segundo Bronislaw Malinowski, parte da premissa de entender os nativos através da “adoção do seu ponto de vista”. De acordo com esta lógica, não existe melhor forma de compreender as pessoas do que inserir-se nos seus contextos e ver o mundo através dos seus olhares, inevitavelmente moldados pelas suas crenças e valores. Assim, o ambiente em que as pessoas operam, com as suas particularidades, pode ajudar a explicar o porquê da forma como elas pensam, falam e agem naquelas circunstâncias.

Nesse sentido, o esforço etnográfico materializa-se na realização de um trabalho de campo, que implica a ida dos investigadores ao terreno que querem estudar, por um período prolongado [4], para examinar de perto as realidades que procuram compreender.

Quando os investigadores se encontram no campo, algumas das ferramentas que têm à disposição são as entrevistas e a observação participante. Através das entrevistas, podem explorar mais a fundo os diferentes pontos de vista das pessoas envolvidas nos processos. Já a observação participante define-se por uma prática através da qual o investigador “entrosa-se” entre as pessoas, observando e participando das atividades como se fosse um membro do grupo.

Tipicamente, as informações recolhidas durante estes estudos vão sendo registadas num diário de campo (físico ou digital). O propósito deste diário é armazenar anotações, desenhos, imagens, sons, e demais material relevante, criando um repositório de pesquisa.

Ao realizar um estudo etnográfico junto aos Nuers — um grupo nativo do Sudão do Sul — o antropólogo Evans-Pritchard identifica que as conceptualizações do “tempo” na cultura local diferem das que conhecemos em sociedades ocidentais. Se fôssemos desenhar um relógio ou um calendário para os Nuers, portanto, teríamos que aprofundar os nossos conhecimentos sobre estas particularidades, de modo a garantir que a solução fosse adaptada às suas vivências. [5]

Nuer people
Os Nuers, tribo nativa do Sudão do Sul. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nuer_People,_1906.png

Como aplicar o estudo etnográfico a contextos de HCD?

Ao longo de décadas, estudos etnográficos serviram como bases para informar decisões políticas, aprofundar conhecimentos académicos e preservar heranças culturais e históricas de sociedades em vias de extinção. Mas por que razão (e como) é que havemos aplicar este método ao processo de design?

Devido à sua natureza imersiva, o estudo etnográfico aparece como uma excelente ferramenta para dar início às fases de descoberta (ou empatia), já que permite mergulhar nas expectativas e limitações de um grupo de pessoas que podemos não conhecer à priori.

Se adotarmos uma abordagem de Service Design, isto torna-se muito claro: para melhorar a experiência de serviço de check-in num hotel, o primeiro passo é ir observar in situ quais são as dificuldades e oportunidades que surgem na ótica das várias pessoas envolvidas no processo (hóspedes, recepcionistas, empregados…). Posteriormente, fazemos uma análise dos padrões de funcionamento e comportamento, tentando identificar as causas-raíz dos fenómenos observados, de modo a definir o(s) problema(s) que queremos solucionar para as pessoas.

Embora tenham uma terminologia própria, os service designers fazem um trabalho semelhante ao dos antropólogos: vão ao terreno, observam, mapeiam e analisam as interações entre pessoas, artefactos e processos.

Ora, o valor do estudo etnográfico não se limita unicamente às fases exploratórias do processo de Design. Ao prototipar e testar um espaço novo — tal como o lobby do hotel — técnicas de observação participante podem ajudar a revelar pontos de fricção e oportunidades de melhoria.

Vantagens

A pesquisa qualitativa permite-nos responder a questões do âmbito do “porquê”. Algoritmos de Big data podem ajudar-nos a identificar quantas pessoas reclamaram sobre o processo de check-in no nosso hotel nas redes sociais, mas apenas ao observar e interagir com elas conseguimos compreender em profundidade o porquê de o terem feito.

Os estudos etnográficos permitem identificar os problemas de raiz, evitando investir tempo e dinheiro em soluções inadequadas.

Por exemplo, ao constatar que um grupo não gostou da experiência de fazer check-in automático numa máquina na recepção do hotel, devemos tentar identificar o porquê. Uma hipótese seria descobrirmos que chegaram cansados e famintos da viagem após terem enfrentado vários imprevistos. Ao chegar ao hotel, a frieza do atendimento da máquina – incapaz de empatizar com a situação sensível em que estas pessoas se encontravam – poderá ter contribuído para reforçar nelas os sentimentos de cansaço e frustração.

Com base nisto, podemos induzir que ao chegar a este espaço, o nosso público-alvo valoriza ser acolhido por um ser humano “de carne e osso”, que lhes ofereça uma conversa calorosa, uma taça de vinho, ou simplesmente um ouvido atento. Através deste insight, constatamos que não vale a pena investir em check-in automáticos, porque no fim das contas não irá responder às necessidades das pessoas neste contexto. [6] Sem estes dados recolhidos durante o trabalho de campo, poderíamos ter gasto dinheiro em máquinas desnecessariamente.

Ao analisar e compreender tendências culturais (tais como a adesão a um novo serviço), conseguimos projetar soluções que respondam com precisão às necessidades dos clientes, garantindo a sua satisfação e fomentando a confiança no nosso trabalho.

Além disso, abordagens oriundas das ciências sociais podem enriquecer a investigação, em projetos de human-centered design, ao apresentar procedimentos e dicas para lidar com temáticas complexas, tais como boas práticas de observação participante, realização de entrevistas “sensíveis”, tratamento de dados pessoais (RGPD), levantamentos de necessidades, entre outros.

Limitações

É amplamente debatido por cientistas sociais como os resultados de um estudo podem ter um impacto direto na vivência das pessoas junto das quais trabalhamos e recolhemos informações. Investigadores e designers não devemos presumir que as nossas posições são “neutras” e isentas de responsabilidades relativamente ao produto final do nosso trabalho. É importante ter consciência de que existe sempre accountability para com os participantes do estudo. [7]

Efetivamente, a chegada de um outsider a uma comunidade estabelecida pode representar uma disrupção ao desenrolar orgânico das atividades. Por esse motivo, a ideia de observação participante significa envolver-se no grupo sem emitir juízos de valor sobre as práticas culturais que ali ocorrem.

Por exemplo, é provável que um antropólogo europeu a realizar trabalho de campo com refugiados sírios estranhe algumas práticas que lhe sejam desconhecidas e, ao mesmo tempo, sobressaia pelas suas próprias diferenças culturais. Tudo isto pode ter um impacto no comportamento das pessoas. Do mesmo modo, ao observar e interagir com os trabalhadores de uma empresa, um investigador pode ser identificado como um outsider, gerando desconfiança e entraves ao desenrolar da pesquisa.

Felizmente, na literatura antropológica existem inúmeras referências de boas práticas para mitigar os efeitos dessa “desconfiança”, que vão desde negociações de entrada no terreno, a maneiras específicas de se apresentar, até ao trabalho junto a um “informante” insider, que ajuda o recém-chegado a criar laços com os demais membros do grupo. [8]

Outra limitação que pode surgir ao realizar estudos etnográficos em contextos organizacionais é a questão temporal. Conforme referido anteriormente, uma etnografia tradicional resulta de uma exposição prolongada à cultura estudada, de modo a extrair conclusões ricas e trabalhadas. Em contextos empresariais, especialmente se estivermos a seguir metodologias ágeis, o timing tem que ser mais curto.

Há quem argumente que estudos etnográficos rápidos levem a conclusões superficiais e rasas… E, realmente, é um grande desafio encontrar insights profundos com prazos apertados.

“Tornar o familiar estranho e o estranho familiar”

Na sua essência, o pensamento etnográfico pode ser visto como um mindset. Como referem diversos teóricos, a antropologia é um exercício que permite “tornar o familiar estranho e o estranho familiar”. [9] Quando percebemos que existem inúmeras formas de comer, dormir, falar, sonhar, que nenhuma é intrinsecamente melhor do que a outra e que cada uma delas é altamente influenciada pelo seu contexto, é porque o bichinho da antropologia pegou. A partir daí, não há volta atrás. Passamos a olhar para as nossas práticas culturais com estranheza, e naturalizar comportamentos que outrora nos pareciam tão distantes.

Cultivar o pensamento etnográfico é um trabalho constante e que dá muitos frutos. Os insights que retiramos destes estudos podem ajudar a informar estratégias de design com base nas experiências reais das pessoas.

Uma abordagem etnográfica pode impulsionar, entre outras coisas: mudanças de mentalidades, otimização de processos, reduções de custos e a criação ou melhoria de produtos e serviços para responder melhor às necessidades das pessoas e ter um impacto positivo na sociedade.

O meu apelo final às organizações é o seguinte: proporcionem aos investigadores as condições para realizarem estudos etnográficos em profundidade. Estes trabalhos requerem preparação, recursos, e uma equipa habilitada a observar, mapear e analisar dados qualitativos complexos. Compreender as perspetivas das pessoas não é só uma ideia bonita; é uma prática essencial para obter resultados contextuais, fidedignos e acionáveis para tomar decisões informadas e reduzir riscos.

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(Este artigo foi atualizado no dia 16 de abril de 2022).

Notas de rodapé

[1] Uma das grandes mais-valias da abordagem HCD é a interdisciplinaridade que advém de ir beber conhecimento às engenharias, ao design, às ciências sociais e humanas, etc.

[2] Em parte, isto deve-se ao excelente trabalho da EPIC, comunidade de profissionais que partilham o objetivo de alavancar o valor da etnografia na indústria. No contexto do Design, a IDEO e Standford d.school tem sido pioneiras em advogar pelo uso do método etnográfico em projetos de Design Research.

[3] Ethnography: a creative tool for Human-Centered Design https://www.buildinggreen.com/primer/ethnography-creative-tool-human-centered-design (consultado por última vez em 30 de Junho de 2020)

[4] Em contextos académicos, este período costuma ser de um ano ou mais, por oposição a contextos corporativos, onde o timing costuma ser mais curto.

[5] E.E Evans-Pritchard, Nuer Time-Reckoning, Africa: Journal of the International African Institute Vol. 12, №2 (Apr., 1939), pp. 189–216: https://www.jstor.org/stable/1155085?seq=1

[6] Este exemplo é hipotético e não é o resultado de nenhum estudo.

[7] Hodgson, Dorothy L., Critical interventions: Dilemmas of accountability in contemporary ethnographic research: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/1070289X.1999.9962643 (consultado por última vez em 30 de Junho de 2020)

[8] Chugtai, Hameed, Entering the field in qualitative field research: a rite of passage into a complex practice world: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/isj.12124 (consultado por última vez em 30 de Junho de 2020)

[9] (‘Making the familiar strange rather than the strange familiar’ (Van Maanen, 1995:20).

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Kika Barreto
Human-Centered Design Mindset

Hello! I’m a UX researcher with a background in anthropology, passionate about solving problems for people in the different contexts that they inhabit.