Minha Primeira Escada

Hynx
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6 min readJun 6, 2017

Quando era criança eu ganhei de um amigo da família um jogo de tabuleiro chamado “Sobe e Desce”. Não é um jogo muito conhecido no Brasil, mas era uma exata cópia do “Chutes and Ladders” americano da década de 50, que por sua vez se baseia em um jogo indiano do século 19 chamado “Moksha Patam”. É óbvio que eu não sabia nada disso na época, mas ele foi o primeiro jogo que me faria ter consciência de suas regras e modelagem; além de ser o catalisador da formação de um hobby que quase me leva a falência atualmente.

O jogo, para quem não conhece, envolve você jogar um dado de seis lados e andar o número de casas sorteada no tabuleiro com seu peão. Se parar em uma casa com uma escada você sobe; caso seja uma que tenha um escorregador, você desce. Bem simples. Entretanto, o posicionamento desses atalhos, em especial uma escada que faz você ir quase para o topo do tabuleiro, cria uma certa magia de exploração e possibilidade no que antes seria um simples teste de sorte.

Explico: por mais que o jogo consista de cem quadrados agrupados em fileiras de dez, apenas chegar no topo e vencer não é parte da experiência completa. Existem diversos caminhos que te levam até lá, e seguir um caminho diferente ou inusitado é tão recompensador quanto subir aquela escada enorme do começo para o fim do jogo. Então, embora existam inúmeros jogos infantis envolvendo a ação de jogar o dado e andar em quadrados, esse pequeno detalhe faz muita diferença.

Embora esse seja meu milésimo texto usando o artifício “quando eu era criança” para elaborar algo, acho importante nos lembrarmos de épocas mais simples para tentar explicar por que algo nos diverte. Antes de pensar como nos sentimos quanto a algo, ou de rotular coisas baseadas em classificações pouco precisas, quando crianças buscávamos tudo com um objetivo principal em mente. Comida para comer ou por ser gostoso, escutar música para dançar, jogar para se divertir.

Então, buscando no jogo de tabuleiro diversão, e apenas isso, ao pensar sobre diversos aspectos que iam além das regras e das possibilidades de jogo, dizer por que ele me agradava mais do que jogos semelhantes era instintivo, mas não era algo básico. Aquela escada enorme no meio do tabuleiro tinha muito a ver com isso na soma final, mas não era apenas a sua existência que determinava o sucesso da proposta.

The Legend of Zelda: Breath of the Wild também tem uma escada enorme que te leva até o fim do jogo, logo ali depois do comecinho. Você joga algumas horas e te informam que o último chefe está logo lá no meio do mapa, só chegar lá e mandar bala. Eu acredito que esse é o pilar definitivo que separa BotW dos outros jogos de mundo aberto.

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Claro que as coisas não são tão fáceis como no jogo de tabuleiro de exemplo, onde você apenas tira um número mágico no dado e já está lá no final do jogo, mas a escada está lá. No mesmo momento que apontam a existência da mesma também te avisam que é difícil para caralho e que você deveria ficar mais forte antes de ir lá, mas ninguém jamais te impede de tentar, ou te esconde a localidade como se fosse um mistério. Ela fica bem ali, no meio do mapa, quase implorando para que você duvide da dica e vá ver se é foda mesmo de chegar até o chefe final.

No fim das contas, seja por culpa de falta de habilidade, ou por falta de equipamentos, talvez você nunca use essa escada direta para o final. Mas, caso use, uma vez lá em cima é claro que você deixou um tabuleiro todo de oportunidades para trás. Esse é provavelmente o ponto principal da minha comparação com o Sobe e Desce: a existência da escada até o fim não gera uma necessidade de usá-la, pelo contrário, ela gera uma sensação inversa, indicando que chegar até o fim rapidamente não é algo tão importante assim.

Tudo em volta disso acaba seguindo a mesma regra, e a obrigatoriedade de ações ou sequencias em BotW é praticamente nula. No começo do jogo eles até criam um caminho para que você acabe tropeçando no primeiro “templo”, mas nada te impede de ir por outros meios. Isso flui para outros elementos do jogo que embora lembrem pontos já conhecidos em jogos de mundo aberto não passam a mesma responsabilidade para o jogador.

As torres, por exemplo, ao serem escaladas, simplesmente pintam uma área do seu mapa e mecanicamente não fazem nada além disso. Ou seja, embora essa melhora no mapa ajude, tudo ocorre de uma forma natural, o jogador não se sente obrigado a subir em uma torre antes de explorar suas redondezas; já que a ação por si só não te revela nada que você não poderia descobrir subindo em outros pontos altos daquela região.

Não existe melhor armadura, por que cada uma delas defende contra um tipo de dano ou te ajuda em um tipo de situação; não existe razão para buscar a melhor arma do jogo pois elas são descartáveis; a espada mais lendária do jogo só é boa contra um tipo de inimigos. Enfim, aos poucos você vai percebendo o quão diferente o jogo é de tudo aquilo que vemos em outros títulos similares. É impossível bolar a melhor estratégia para o final, pois o final é só um ponto entre muitos outros do jogo. É só mais um quadrado naquele imenso tabuleiro.

Eu sei que existem outros jogos com mundos tão cuidadosamente criados que você se empolga de ir até um ponto qualquer no mapa simplesmente por ir, mas em BotW experimentar o mundo e interagir com o mesmo é o ponto principal do jogo. Quando você finalmente chega naquele quadradinho metafórico do tabuleiro no topo da escada, seja subindo pela mesma diretamente ou enfrentando todo caminho até lá compassadamente, você consegue sentir o peso daquele mundo centrado naquele ponto.

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Você anda por Hyrule e vê vilas com pessoas com problemas corriqueiros, outras que já desistiram da ideia de serem salvas, e até mesmo pessoas despreocupadas com todo o caos que está rolando, e só querendo viver dia após dia. É um mundo que você sente que já vive antes de você como jogador ou herói entrar nele, não simplesmente existe como cenário para sua aventura. É muito maior que você ou que o Link. Assim como de nada serviria o fim da escadaria sem tudo ao seu redor, de nada serve salvar um mundo sem sentir o peso que isso representa.

Passar esse peso todo em algo que soa tão ingênuo não é novidade para a franquia, mas BotW consegue buscar ideias funcionais já existentes (e até desgastadas) no nosso meio, deixando-as naturais e inocentes como a série parece ser. Isso faz com que até uma pessoa que não conheça Zelda ou a fama da franquia consiga apreciar o que está sendo mostrado de forma muito clara e simples; assim como eu não precisava saber que Sobe e Desce era um jogo clássico do século dezenove ou realmente entender todo seu conceito para curti-lo quando criança.

Essa conexão que a Nintendo cria tão, infantil e simplista, é o que consegue conectar suas maiores franquias a públicos de variadas faixas etárias e gostos, e eu creio que The Legend of Zelda: Breath of the Wild é o jogo que mais consegue transpor isso até hoje. Acredito, sinceramente, que esse é um título de extrema importância para videogames no geral e ainda iremos debater e usá-lo muito no futuro. Talvez isso também demonstre que nossa mídia ainda está muito menos evoluída do que pensamos estar, mas apenas talvez.

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