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É a escrever mal que se aprende a escrever bem?

Receitas de miojo e hino do Palmeiras em textos com notas intermediárias, e erros crassos de ortografia nas avaliações de acadêmicos. E agora, José?

Raphael Rios Chaia
I. M. H. O.
Published in
6 min readJun 5, 2013

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A frase de Samuel Johnson se tornou uma interrogação na minha cabeça. Antes de começar a lecionar em universidades, iniciei minha experiência como docente em cursinhos e em um colégio, dando aulas de português e redação, lá nos idos de 2004, mais ou menos. Lia uma por uma as redações que recebia dos meus alunos, e fazia questão de fazer todas as anotações que eram necessárias para melhor orientar cada um deles.

Não existe receita secreta para uma boa redação: você precisa ler muito, estar sempre atualizado com relação ao cotidiano, e conhecer a estrutura básica da dissertação. Na introdução, o foco é a apresentação do tema e da tese que você pretende defender; no desenvolvimento, você discute sua tese, e traz os argumentos e fundamentos que a apoiam; na conclusão, você reafirma sua tese, ou ainda faz uma proposta de intervenção sobre o tema. Além do mais, escrever é um exercício de prática, ou seja, só escreve bem quem tem o hábito de escrever. Ler muito, praticar bastante, e ter uma boa visão crítica sobre tudo o que fizer: basta isso para que você possa escrever bem.

A redação sempre foi um ponto chave nas avaliações de vestibular. É pela redação que você avalia não só se o candidato tem conhecimento sobre temas do cotidiano, mas, também, se ele é capaz de articular bem as ideias, expô-las de forma coerente, e se possui satisfatória capacidade de interpretação textual.

Qual a minha surpresa ao ver as últimas notícias sobre o ENEM… Receitas de miojo e hino do Palmeiras em textos com notas intermediárias, e erros crassos de ortografia nas redações avaliadas com nota máxima pela banca designada para a correção.

Duvido que tenha sido escrita em 2 minutos…

Para quem não conhece, esses são os critérios de correção da redação do ENEM:

1ª competência: Demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita.

2ª competência: Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo.

3ª competência: Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.

4ª competência: Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários à construção da argumentação.

5ª competência: Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

Não consigo entender como essas redações conseguiram notas intermediárias, sinceramente. Essas brincadeiras, por si só, já atentam contra as competências 2, 3 e 4 da relação acima, uma vez que comprometem toda a coerência do texto, sua unidade e toda a ordem de ideias apresentadas. São textos vazios de significado e com pouca ou nenhuma coesão.

No caso do estudante responsável pelo hino alviverde, a falha foi dolosa, já que o queria provar era que os examinadores não liam a redação antes de avalia-la. Ponto provado: como alguém, observadas as regras acima expostas, avaliaria com a nota 500 uma redação que não apresentava qualquer coerência ou conteúdo em mais da metade de seu corpo?

Redaçãozinha de segunda heim? *ba dum tsh*

Não bastasse a falta de seriedade (como no caso da receita de miojo, que garantiu a nota 560 ao seu autor), verificamos que muitos candidatos simplesmente não sabem fazer o uso devido do vernáculo nas suas redações. Algumas das pérolas nas avaliações indicam que a capital da Argentina é “Buenos Dias”, que a Previdência garante a “enfermidade coletiva”, que nem todo “desmatamento” animal é ruim, e que “bigamia” era um carro “puchado” por dois cavalos. Isso fora absurdos como “enchergar”, “rasoavel” e “trousse”. Vejam bem: estamos mostrando falhas de redações avaliadas com a nota máxima pelo INEP.

O jornal “O Globo” recebeu cerca de 30 textos enviados por candidatos que receberam nota 1.000, confirmadas pelo MEC. Para obter pontuação máxima, os candidatos deveriam, de acordo com o “Guia do participante: a redação no Enem 2012", atender plenamente a cinco competências, inclusive “domínio da norma padrão da língua escrita”. Pelo manual do MEC, desvios gramaticais mais graves, como ausência de concordância verbal, deveriam, em tese, excluir a redação da pontuação máxima.

Em reportagem do jornal Estadão, o MEC justificou dizendo que “a análise de texto é feita como um todo e que eventuais erros de grafia não significam que o aluno não domine os padrões da língua”. Ainda de acordo com o ministério, uma redação pode ter a pontuação máxima mesmo apresentando erros em cada competência avaliada, pois existe uma tolerância para fins pedagógicos.

Pedagógicos? Esse é um momento de avaliação, não de ensino. Além disso, o critério de correção é OBJETIVO, ora, não subjetivo. Não existe justificativa para avaliar com nota máxima um texto que traga frases como “unir todos juntos de mão dadas”, por favor. Como pode ser válida a justificativa de compensar critérios diferentes para a avaliação? Cada critério corresponde a uma parcela da nota. Se ele argumentou de forma excelente, dê-se nota máxima nesse critério; se a ortografia é ruim, desconta-se no outro, e pronto.

A minha maior preocupação ainda é o tipo de acadêmico que entrará na faculdade. O jornal Gazeta do Povo publicou um excelente artigo, intitulado “Com Diploma e Sem Português” que discorre com muita propriedade sobre esse problema. Nele, o autor aponta falhas graves registradas no último ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes), e a preocupação quanto à qualidade do acadêmico que entra, e o profissional que sai das faculdades.

Um formando, por exemplo, afirmara que “a violencia e causada muitas vezes pela falta de cultura e pela egnorancia dos seres humanos, cuja a tecnologia sao duas grandes preocupação (sic) para a sociedade, causando violencia nas escolas”. Outro estudante escreveu que “as escolas tem que orienta e ajuda estas crianças que são violêntas e pratica o bule por enquanto são crianças por que só assim elas terão chacer de melhora e ser uma pessoa melhor e mas calma(sic).

Aqui estamos falando não mais de estudantes de ensino médio, mas de universitários, pessoas que em tese foram avaliadas em todas as competências relacionadas ao português e redação para sua aprovação no ensino médio. Frases sem qualquer nexo e coesão, erros crassos de português, e pior, vindo de pessoas que usarão a palavra como seu principal instrumento de trabalho, como no caso dos acadêmicos de Direito e Comunicação Social. Depois o sujeito se forma, e passa umas vergonhas como essa diante de um juiz…

Data vênia, caro colega, mas que diabos?!

O uso correto da língua portuguesa está diretamente ligado ao exercício da própria cidadania. Não é exagero: a linguagem é um elemento formador de identidade da sociedade, e é pela palavra que manifestamos nossas ideias, nossas criticas, nossos desejos e anseios. O “falar bem” e o “escrever bem” garantem que nossas vozes sejam ouvidas, que nossas ideias sejam perpetuadas, e que a comunicação seja estabelecida a contento entre os povos. É preciso rever com urgência os critérios de correção das provas de vestibular, e necessário se faz avaliar, todos os dias, o uso correto da linguagem. Precisamos estimular a leitura, mas a boa leitura. A internet permitiu que as pessoas lessem e escrevessem muito; está passando da hora, porém, de brigarmos pela qualidade do que se lê e do que se escreve. As futuras gerações agradecem.

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Raphael Rios Chaia
I. M. H. O.

Advogado e professor universitário, especialista em Direito Digital e Ambiental, Mestre e Doutor em Desenvolvimento Local. https://bento.me/raphaelchaia