Fotografia: Toshiro

Meu nome é Lúcia 

De que vale um sobrenome quando o que se tem não vale nada? 

tosh.iro
I. M. H. O.
Published in
4 min readJul 19, 2013

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Eu, av. Álvares Cabral, nº terceira árvore.

Esse é o endereço dado a quem pergunta a Lúcia, 55 anos, moradora em situação de rua há três, onde pode ser encontrada. Ela vivia em uma barraca de camping com seus quatro cães, Suzi, Pirata, Piratinha e Pequeno Vagabundo, instalada na grama do canteiro central de uma das principais avenidas de Belo Horizonte, até ter seus pertences recolhidos pela fiscalização municipal e ser multada em R$238,99 .

Atualmente, Lúcia divide com seus inseparáveis cães uma barraca de papelão improvisada, no segundo metro quadrado mais caro da cidade, no bairro de Lourdes, cujas paredes escritas a giz servem de veículo de protesto contra os abusos cometidos aos moradores em situação de rua.

Recentemente, às vésperas do seu aniversário de 55 anos, teve os cães recolhidos e castrados sem sua permissão por uma ONG, e Bianca, filhote recém-nascida de Piratinha, levada por um desconhecido enquanto dormiam.

Seres ou não seres? Eis a questão.

De que vale um sobrenome quando o que se tem não vale nada? É o que se questiona Lúcia cada vez que perguntam a ela o seu nome completo. Meu nome é Lúcia, e ponto!

Com um ar um tanto quanto amargurado de quem tem propriedade para ser, porém de firmeza e lucidez inabaláveis, Lúcia, que já havia sido protagonista de um documentário, chamou atenção nas últimas semanas ao escrever nas paredes de papel da sua barraca improvisada um pequeno manifesto contra as condições às quais os moradores em situação de rua são submetidos.

Ainda na onda da polêmica "política de higienização" das ruas da cidade num tempo de eventos públicos internacionais, Lúcia gritou por atenção e fez-se mostrar de alma clara e limpa, embora as vestes cinzas e amarrotadas ocultassem isso há tempos.

O frio e a fome não se intimidam com sobrenomes pomposos, ao contrário do ser humano. O que para o infortúnio do acaso não vale nada, para aqueles que veem o morador em situação de rua como um problema a ser solucionado, como uma sujeira a ser higienizada, é a garantia da impunidade e a certeza da indiferença popular.

Vidas privadas em espaços públicos, essa é a ideia que talvez não seja conveniente ser comprada e assim torna-se fácil descaracterizar o indivíduo desprovido de bens como alguém também desprovido de direitos. Como se os direitos estivessem ligados à condição financeira e não à condição de humanidade.

As denúncias sobre a existência de uma “política de higienização” das ruas de Belo Horizonte aumentaram às vésperas da Copa do Mundo . Mas, para a Justiça, essa ação diminui “as possibilidades de sobrevivência” das pessoas que ocupam os espaços públicos.

Para a desembargadora Teresa Cristina da Cunha Peixoto, da 8.ª Vara Cível do TJMG, a apreensão dos objetos, principalmente documentos de identificação, “torna-se prática compatível com o extermínio desse segmento populacional”. No texto da decisão, a magistrada avaliou que existem provas de que o poder público afronta “preceitos éticos em suas condutas de fiscalização, incorrendo em imoralidade”.

Não é necessário ter lido a Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant ou saber de cor e em ordem alfabética os direitos fundamentais da Constituição Brasileira para formular uma ideia básica de que as pessoas deveriam ser tratadas como um fim em si mesmas, e não como um meio.

É fácil perceber o momento em que ocorre a coisificação do ser humano. Basta responder a si mesmo se você concorda que no reino dos fins tudo tem OU um preço OU uma dignidade.

Saber discernir que quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente, e que a dignidade é algo que não compreende qualquer outra equivalência e que por isso está acima de qualquer preço, é um bom caminho.

Caso contrário, continua-se tirando o pouco do nada, com a única intenção de anulá-lo com a porca desculpa do bem comum. Continua-se confundindo um cachorro de um morador em situação de rua com um algo de ninguém. Continua-se segregando. Continua-se assim.

“(…) Seres ou não seres
Eis a questão
Raça mutante por degradação.

Seres Tupy - Pedro Luiz e a Parede

Imagem do documentário LÚCIA
Imagem do documentário LÚCIA
Imagem do documentário LÚCIA
Imagem do documentário LÚCIA

http://vimeo.com/46195144 — Documentario LÚCIA, do diretor Sérgio Renato para EXPOUNA.

http://youtu.be/Rdt1HjUfZS8 — Lúcia faz um comovente apelo para que devolvam Bianca, a cadelinha desaparecida e ainda denuncia grupo de pessoas que castrou seus cães sem a devida permissão.

http://youtu.be/7RZ2Ovl3vqk - Populares filmaram a ação dos fiscais, que estavam sem qualquer identificação, quando recolheram os pertences de Lúcia do canteiro central da avenida Álvares Cabral.

Os vídeos acima foram encontrados na internet. Os créditos e direitos de divulgação pertencem aos seus produtores.

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