Os carrascos de Jayminho
Mais uma vez, a novela “Amor à vida” se meteu em uma polêmica étnico-racial. Não bastasse não escalar de início nenhum negro para o folhetim e Mateus Solano dizer que o final justo para o vilão gay seria acabar seus dias em uma cadeia com um negão, o autor Walcyr Carrasco pediu para mudarem o visual de Jayminho, criança negra que será adotada pelo casal homossexual da trama, porque criticaram o blackpower do garoto.
Tentando se explicar e metendo mais os pés pelas mãos, Walcyr alegou ter “ouvido críticas muito pesadas e rejeição, principalmente ao cabelo dele. Eu quero um personagem bem aceito”. Em seguida, se defendeu “Só quero lembrar que eu escrevi “Xica da Silva”, primeira novela com protagonista negra no Brasil. Isso sim é lutar contra o preconceito” e piorou a situação quando disse “Mas a verdade é essa: só pedi para mudar o visual de Jayminho porque ele foi adotado por alguém de dinheiro. É o que aconteceria”. E arrematou “Bem, se não estão felizes com o que estou fazendo contra o preconceito, tiro o personagem da novela e acaba a polêmica”.
É tanto preconceito racial junto que prefiro ir por partes.
Quando o autor disse que ouviu “críticas pesadas e rejeição” ao blackpower de Jayminho, ele expôs o racismo de parcela da população que vê e que está ligada (direta ou indiretamente) à produção de “Amor à vida”. Walcyr deixou óbvio que Jayminho incomoda tanto o público quanto os anunciantes, ambos carrascos.
Jayminho se destaca. Primeiro porque é um dos únicos negros da trama. Além disso, seu cabelo expõe sua negritude — Jayminho é negro (não é moreno, pardo ou qualquer outra variação). E outra, por mais que o personagem esteja no lugar onde, historicamente, negros são colocados na teledramaturgia, ele tem a possibilidade de sair da situação de pobre, sem história e sem família para ocupar o espaço de garoto amado da classe média que possui uma família. Tudo isso o coloca em evidência, causando incomodo, rejeição e não aceitação. Afinal, “tanta criança e eles vão adotar logo um negrinho com esse cabelo mal cuidado? Ele nem combina com o casal. Não merece isso. Não aceito.”.
Ora, Walcyr quer um personagem bem aceito. E ser bem aceito é se adequar à norma do historicamente dominante. A regra é carrasca e diz: se você não é branco com o fenótipo de branco, seja o menos preto possível. Então, produção(!), corte o cabelo desse menino! Só assim ele será menos rejeitado. A sociedade carrasca pensa assim, Walcyr parece seguir na mesma linha.
Mas o autor escreveu “Xica da Silva, a primeira novela com a protagonista negra no Brasil”, não é mesmo? É. Mesmo reproduzindo discursos estereotipados, concordo que colocar uma mulher negra como personagem principal de uma trama quebre parte do paradigma. Porém, dizer que “isso sim é lutar contra o preconceito” é inferiorizar a luta contra padrões estéticos que oprimem e agridem negros e negras diariamente. Nesse contexto da não aceitação pura e simples, cortar o cabelo de Jayminho é uma violência contra a criança que o interpreta e contra todos os que têm blackpower e tentam ocupar um espaço no mercado de trabalho. A velha e carrasca história da “boa aparência” não ficou ultrapassada, ela continua aprisionando o crespo alheio.
Walcyr também deve ser daqueles carrascos que condicionam a negritude à pobreza, pois só pediu “para mudar o visual de Jayminho porque ele foi adotado por alguém com dinheiro”. O autor deve acreditar que, ao ser adotado pelo casal de classe média-alta, Jayminho vai ser bem cuidado por pais de “bom gosto” e, assim, “melhorará” seu visual, ganhando, além de roupas e sapatos, um cabelo “adequado” — leia-se não crespo ou careca — a sua nova forma de vida. Ao contrário do que esses carrascos pensam, blackpower não é sinônimo de descuido e pobreza, mas sim de resistência e de orgulho do tipo de cabelo que foi historicamente oprimido e inferiorizado por ser diferente do que o definido pela norma.
Para acabar com a polêmica, Walcyr disse que poderia tirar Jayminho da trama. Esse posicionamento não é nada diferente do desfecho de outras questões étnico-raciais no Brasil: encerra-se o assunto com o silêncio que oprime ainda mais a vítima e que é conivente com o opressor. Nesse caso, o ator perde seu papel na trama, os racistas continuam achando que estão corretos e a chance de se discutir o assunto e avançar positivamente em questões étnico-raciais se perde. Desserviço.
É violência uma criança perder seu emprego por conta do racismo alheio travestido de “boa aparência” e justificado pela ascensão social. Na verdade, o cabelo de Jayminho é só uma desculpa para a não aceitação de uma criança negra estar no horário nobre e ter a possibilidade de ocupar um espaço diferente daqueles nos quais negros foram historicamente colocados. Walcyr pode até levantar algumas outras bandeiras e ser bom no que faz, mas, no que diz respeito a relações étnico-raciais falta muito. Falta não só para ele, mas para um Brasil inteiro formado de carrascos.
Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no https://medium.com/@higorfaria