OPINIÃO | Afinal, sobre quem é que “Bacurau” está falando?

Iana A.
IANATXT
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3 min readSep 18, 2019

“Ei, você aí do Sudeste. Essa história não é sobre você.”

Algumas semanas atrás houve a estreia de “Bacurau”, dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho e ambientado numa cidade fictícia no sertão de Pernambuco. Muitos atores coadjuvantes são da região onde foi filmado Bacurau, nas cidades de Acari e Parelhas (ambas no RN). Muitos dos atores principais são nordestinos. É uma produção pesadamente local, com uma narrativa claramente nordestina, que tem uma mensagem tão clara, tão “sem arrudeios”, que o espectador precisa ficar atento. Não atento para captar alguma mensagem alegórica, mas para não ser respingado de sangue no caminho.

E no entanto, apesar de toda essa clareza explícita que grita na cara do espectador, algumas críticas têm circulado afirmando que Bacurau nada mais é do que uma grande “alegoria às favelas do [insira aqui um estado do sudeste]”.

E não, gente. Só não.

Este filme é sobre o povo nordestino, é sobre preconceito, é sobre privilégio que transforma esse preconceito num entretenimento. São essas coisas levadas ao extremo, “num futuro não muito distante”, como diz o filme.

Bacurau, a cidade fictícia, podia ser em qualquer sertão. Não precisava ser Pernambuco. Não precisava ser filmada no Rio Grande do Norte. Podia ser qualquer uma cidadezinha no sertão bahiano ou cearense ou piauiense, porque fala sobre o nordestino sertanejo. Fala de nordestinos sendo vistos com desprezo e preconceito por sudestino branco (que se acham puta europeus quando, no máximo, são uns “latinos bonitinhos” — sic filme). Fala sobre esquecer que o sertão existe (cadê Bacurau no mapa?). É mostrar que tem sim gente boa, gente inteligente, e gente que vive no sertão, apesar de quaisquer adversidades, sem ter que “ir fazer a vida em São Paulo”. É sobre nordestinos no Nordeste vs o mundo.

Sabe sobre o que Bacurau não é? Rio de Janeiro. São Paulo. Belo Horizonte. Suas favelas.

Por que é tão difícil pra esses “críticos” do Sudeste levantarem o olho do próprio umbigo? É tão ruim ser retratado como “o outro” que eles precisam ficar criando metáfora onde não existe nenhuma? Precisa mesmo ser o centro de toda narrativa do cinema nacional?

Sabe o que são paralelos com favelas e marginalização no Rio de Janeiro/São Paulo/Belo Horizonte? Cidade de Deus. Tropa de Elite. Carandiru. Madame Satã. Escolham, de filmes sobre o assunto temos vários.

Mas Bacurau é sobre Nordeste. Bacurau é sobre nordestinos e como são vistos como menos do que gente. A pergunta é feita no filme: quem nasce em Bacurau é o que? Quem nasce no Nordeste é o que? Um sofrido? Um forte? Um retirante? Um mendigo? Uma piada? Um ignorante? Um porteiro? Uma faxineira? Um ambulante? Um analfabeto?

Quem nasce em Bacurau é gente. É nordestino.

Bacurau não é sobre o Sudeste. Violência e marginalização não são uma exclusividade de suas favelas, é algo institucionalizado pelo Brasil todo. Existem vários cenários diversos em que esses problemas sociais podem ser expostos, em diferentes ambientações que não sejam uma favela do Rio de Janeiro.

Talvez se nosso cinema nacional tivesse mais diversidade de vozes e cenários, esses críticos já soubessem que nem tudo é sobre o seu próprio quintal.

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Iana A.
IANATXT
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