Um respiro em meio à tempestade: o Festival Relampeio

O evento, totalmente online e gratuito, foi uma ilha de arte e literatura entre tantas angústias atuais.

Iana A.
IANATXT
6 min readJun 17, 2020

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Às vezes fica mesmo parecendo que o mundo vai se acabar. Eu me sinto pior que um náufrago à deriva: nos últimos tempos, é como se nem bote salva-vidas eu tivesse. Estou, de fato, nadando à largo em alto mar, vendo a tempestade se formando ao meu redor, no meio da noite, e tudo o que eu tenho para seguir em frente, rumo à alguma terra firme (mesmo que ela seja pedregosa e difícil), são meus próprios braços. Aqui e ali vejo outros braços nadando, mas às vezes as ondas são tão largas e tão altas que é fácil se sentir completamente só. Às vezes, parece que vou mesmo me afogar.

Entre os dias 12 e 14 de junho (também conhecidos como fim de semana passado), aconteceu o Relampeio — Festival Literário Internacional, organizado por um monte de gente fantástika e encabeçado por Ana Rüsche e Jana Bianchi, e por alguns dias esse vento foi um verdadeiro bote salva-vidas para mim. Antes de qualquer coisa: se você perdeu ou nem sabe do que eu estou falando, nada tema! Todo o evento está salvo e disponível no canal do YouTube deles (e também será legendado!).

O objetivo do festival foi trazer nomes relevantes do cenário internacional de fantasia e ficção científica para conversar com o público brasileiro que trabalha nesse eixo dentro do nosso mercado literário. Foi uma passarela de tanta gente incrível que eu nem sei por quem começar a nomear! Foi também um movimento de solidariedade: completamente gratuito, construído através do voluntariado, destacou três projetos sociais para serem apoiados pelos espectadores do evento: a Casa Transformar, no Ceará, a Rio Negro, Nós Cuidamos!, do Amazonas, e a Sobrevivendo ao Coronavírus, de São Paulo. O evento já passou, mas essas entidades, cada uma em um fronte diferente, ainda estão ativas e aceitando doações!

Tive o prazer de ter sido convidada para mediar uma das mesas do evento e, além disso, fazer parte da equipe de tradução simultânea (e talvez essa seja a única vez que vocês vão me ver usando o termo “tradução simultânea” nesse blog. Por quê? Stay tuned.) que passava a conversa das mesas, rolando em espanhol ou inglês, para o português, no próprio chat ao vivo do YouTube — chat este que foi um evento à parte, aliás. Isso tornava o festival acessível para quem não falava o idioma da conversa, diminuindo a distância entre o internacional e o nacional.

Em tempos de pandemia e verdadeiras tragédias políticas, sociais e ambientais (que não são novidade para ninguém que vem prestando atenção há mais de quinze minutos), fazer parte de um evento desses foi como ter uma trégua entre uma onda e outra, conseguir respirar fundo e sentir, pela primeira vez em um bom tempo, que existe fôlego suficiente para seguir esse nado num mar turbulento que estamos todos fazendo. Os nove convidados foram variados, de diferentes lugares do mundo (pense aí China, Argentina, Holanda, EUA, México, Itália), participando desse festival trilíngue, gratuito e acessível, com experiências de vida e mercado diversas, que trouxeram tanta informação, crítica, perspectiva e análise em suas falas que olha, mais de uma vez foi de fazer chorar.

Com a coordenação da querida Kali de Los Santos, e juntamente com Fábio Kabral, fui mediadora na conversa com Bill Campbell sobre a experiência dele à frente da Rosarium Publishing, pequena editora nos EUA que foca em publicar “ficção especulativa, HQs e um toque de crime fiction — tudo com um gosto pelo multicultural”. A mesa aconteceu na sexta-feira, primeiro dia do evento. Eu estava absolutamente apavorada (pois como toda escritora média, se tem uma coisa que me apavora é falar em público), mas antes que eu pudesse perceber, a conversa já estava fluindo tão bem que qualquer nervosismo foi esquecido no fundo da minha mente. Bill falou com a gente sobre representatividade dentro do mercado literário, a origem da sua editora, as visões e debates sobre o que é afrofuturismo (e como ele não liga para esses rótulos e subrótulos do gênero), e porque “diversidade” não deveria ser uma palavra explorada como é no mercado.

Sob a tutela minuciosa de Fernanda Castro, coordenadora das traduções do evento (e bruxa-amiga no Coven de Escrita), e ao lado dos colegas tradutores JP Lima e Santiago Santos, traduzi a mesa de Thomas Olde Heuvelt (autor do romance bruxesco Hex), coordenada por Jana Bianchi com a mediação das maravilhosas Carol Chiovatto e Anne Quiangala, e a de Francesco Verso (escritor prolífico, solarpunker, organizador de antologias multiculturais e editor da Future Fiction), com coordenação de Petê Rissati e mediação de Walson de Souza e Fábio Fernandes. Foi uma loucura e um prazer imenso participar e fazer esse formato funcionar!

Teve muito mais coisa do que caberia aqui (teve Neil Clarke da Clarkesworld falando com a gente!), e ainda tenho alguns vídeos do evento para ver (dessa vez pausadamente, com um bloquinho de notas já pronto para a verdadeira aula que foram essas conversas!), mas se você tem algum interesse em participar do mercado literário não só como autor, mas como ator, você vai encontrar muita coisa interessante para ver.

O fato de o festival ter sido online é extremamente importante — para mim, pelo menos. Sou do Recife que, apesar de capital, é uma capital beeeeem longe do eixo Rio-SP, onde a maioria dos eventos literários acaba acontecendo. Não é todo ano que dá para desembolsar passagem para evento. E não só isso: quanto seria para trazer Xia Jia da China até o Brasil, para conversar com um auditório fechado? Quanto essas pessoas nesse auditório teriam que pagar para ouvi-la falar? Online, nada disso é um problema. Online, o Relampeio elimina completamente a barreira geográfica que afasta tanta gente interessada em ficção científica e fantasia dos eventos “grandes”. É também por esse aspecto democratizador que o evento é tão importante, e outro motivo que me faz esperar que haja mais edições pela frente!

A razão de um festival desses, tão abrangente e gratuito, ter acontecido não é segredo: a pandemia do covid-19 cancelou todos os eventos presenciais do ano (ou os adiou por tempo indeterminado). Ao contrário do que pode parecer, não foi uma “oportunidade” que surgiu, mas sim uma necessidade de preencher esse vazio. Quem trabalha com o texto, do escritor ao editor, geralmente trabalha porque ama literatura. É uma área repleta de amor pelo que se faz e desprovida de dinheiro. Muitas vezes, o que nos alimenta a alma e nos dá esse ímpeto de seguir trabalhando contra toda a adversidade ao nosso redor é exatamente esse contato com os nossos pares. Ver e conversar com as pessoas que estão no fronte dessa (aparentemente) interminável batalha que é produzir literatura me diz mais ou menos assim: “olha, é difícil, é ingrato e, muitas vezes, é injusto; mas seguimos remando contra a maré e fazendo o que tem que ser feito para mudar isso”.

O Festival Relampeio é sobre isso, sabe? É sobre esperança em tempos sombrios e tempestuosos. É lembrar que apesar de parecermos perdidos nesse oceano de desgraças, muitas vezes já temos uma bússola dentro da gente dizendo para onde devemos seguir. E, nossa, como é bom segui-la e saber que não se está só.

Deixo aqui uma recomendação final para acompanhar esse fio de Santiago Santos no Twitter, onde ele fala um pouco (em inglês) do que rolou no evento, e esse outro de Fernanda Castro, que ela fala da organização e dos tradutores do evento (somos muitos!).

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Iana A.
IANATXT
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Pernambucana que escreve, traduz e revisa. @ianatxt em todas as redes.