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Era de madrugada e eu estava morrendo de sono. Eu digo isso como um disclaimer, porque pode ser que pareça bizarra a proporção que a coisa tomou. Nada do que tem nesse texto é mentira.
Eu estava descendo pela minha timeline do Twitter, como de costume, e me sentindo meio mal com isso, como de costume. A tela do celular, quando segurada à frente do rosto no escuro, bagunça completamente a noção de espaço da gente, e o Twitter piora isso porque é efetivamente
infinito, uma torrente contínua de estímulos. Já houve várias noites em que eu fui tragado por essa corrente por tantas horas suspensas que a minha mente fechou ali as bordas da realidade e excluiu tudo no universo inteiro que não fosse foto, vídeo ou texto de até 280 caracteres.
A minha sorte é que o Twitter é um imenso vagão de metrô; qualquer coisa em que eu botasse os olhos ou era claramente humana em si mesma ou podia ser associada sem grandes problemas ao ímpeto expressivo de alguma pessoa. Mesmo flutuando pela tela, mesmo tendo meu cérebro
empurrado pra dentro do travesseiro pela força da luz parada da tela, eu nunca deixava de me manter ancorado ao mundo fora dela.
Mas eu fui descendo até chegar às 00:56, e apareceu um retweet comentado do Brener dizendo “eu to chorando de odio meu deus do ceu OQ TEM NESSA IMAGEM???”. Eu cliquei no tweet em questão meio sem prestar atenção. Era uma foto, postada por uma conta de humor com 6500 seguidores,
com um desafio na legenda: “Name one thing in this photo”.
A minha primeira reação, obviamente, foi pensar que provavelmente era exagero, e me preparar pra a decepção. As pessoas na internet não se demoram muito na observação, passam 15 segundos numa coisa antes de ir pra próxima; um vídeo com a legenda “o final desse video eh impossivel
de entender!!” dificilmente vai ter um final impossível de entender, etc, etc. Talvez fosse até culpa minha própria essa apatia, por eu estar calejado ou sei lá. (Esse processo todo durou meio segundo, o tempo de eu bater o olho na foto e registrar a impressão geral “canto de uma
sala com tralhas amontoadas”.) Independente do motivo, eu comecei a examinar a foto certo de que alguma coisa, *alguma* coisa, nem que fosse um objetinho esquecido no canto, eu ia conseguir dizer o que era.
Eu olhei primeiro pra coisa peluda no canto inferior direito, que parecia ter um olho fechado, e se tinha um olho fechado provavelmente era um bicho. Mas não era um bicho. Tinha a forma de um bumerangue grande, mas peludo, e com um olho fechado. Que na verdade não era um olho,
porque não tinha como um ser um olho se não era um bicho, mas se não era um olho era o quê? Logo acima da coisa peluda havia uma cabeça de cervo. Eu olhei mais pra perto e percebi que o focinho do cervo não existia; a cabeça simplesmente parava onde começava o objeto ao lado,
igual uma mancha de tinta em uma parede. O olho do cervo eram três faixas de tons de marrom próximos, emolduradas por uma linha curva escura que não podia ser uma sobrancelha. O cervo não tinha galhadas; a cabeça dele se misturava com os dois retângulos pretos encostados na
parede atrás dela. Não era um cervo. Não eram retângulos. Não era uma parede.
Eu comecei a olhar em volta, pro display de joias que não era um display de joias, pras sacolas que não eram sacolas, pro papel celofane que não era papel celofane, pras pétalas que não eram pétalas, e gargalhei — não era possível. Semicerrei os olhos, tentei passar um pente
fino nas duzentas e trinta coisas claramente palpáveis, claramente empilhadas ali mais pra trás naquele canto, mas nenhuma das coisas era nada e o canto não era exatamente um canto a não ser pelas diferenças de cor, porque não existia nenhum elemento na foto que me permitisse
comprovar que aquelas eram realmente paredes ou que aquele realmente era um chão. Gargalhei mais, mas dessa vez menos entretido do que nervoso, porque aquilo tinha deixado de ser um divertimento; era uma foto! Não era uma pintura surrealista, nem uma montagem; era uma foto!
Como eu sabia que era uma foto? Eu não sabia como eu sabia, mas aquelas texturas e e aqueles relevos e aquelas sombras específicas tinham que ser de uma foto. Que texturas? Que relevos? Era uma foto? Era uma foto. Uma foto do quê?
Uma foto do quê?
Eu comecei a ler as respostas ao tweet, que tinha 12 mil retweets e 30 mil curtidas, esperando ver cumprida a regra de que não havia mística que a internet não pudesse quebrar. Li dez, quinze, vinte respostas; a maioria eram reações tão atordoadas quanto a minha — “I feel sick”,
“this image is cursed”, “what the fuck” — e mesmo as tentativas mais dedicadas de nomear algo eram vãs; não, não tinha macaco nenhum, não, não tinha travesseiro nenhum, estava todo mundo forçando a barra. Decidi dar retweet comentado eu mesmo, e escrevi “eu to gritando de rir
como que pode uma foto que simplesmente NENHUM elemento é reconhecivel”. Pensei um pouco sobre se esse ia ser mesmo meu comentário. Substituí a palavra “foto” por “fotografia”, pra enfatizar que era uma fotografia e não só uma imagem aleatória. Aquilo era *alguma coisa*. Era um
recorte do mundo. Tinha que ser. Fiquei olhando de novo pra foto, procurando, procurando. Nada. Eu não sabia. Nenhuma das 30 mil pessoas sabia.
Baixei a foto e mandei no grupo do WhatsApp dos meus amigos do ensino médio, implorando que eles tentassem discernir algo. Os primeiros que me responderam disseram que não conseguiam. Eu respirei fundo. Uma outra amiga minha, que me seguia no twitter, me enviou no WhatsApp “mano
aquela foto q vc deu rt eu tive que fechar nao aguentei”, depois “eu fiquei atordoada de verdade meu cerebro tentando reconhecer alguma coisa e nao conseguindo”, depois “até doeu”. Olhei pro relógio e tinha se passado uma hora. Era 1 da manhã. Eu tinha que acordar dali a 4
horas. Me forcei a deitar pra dormir. Fiquei pensando na foto. Espremi os olhos fechados. A coisa peluda…
Acordei com o alarme do celular, com sono demais, e voltei a dormir. Quando acordei de novo dentro de 40 minutos, agarrei o celular e usei a pesquisa reversa de imagens do Google pra descobrir a origem da foto. Cheguei a uma publicação do Reddit do dia 19, dizendo: “Essa imagem é
projetada pra dar ao observador a experiência simulada de um derrame no lobo occipital do córtex cerebral, onde a percepção visual ocorre. Tudo parece assustadoramente familiar, mas não dá para reconhecer nada”. A publicação não dizia quem tinha “projetado” a imagem, nem como.
Eu comecei a me perguntar como aquilo era possível, como se saía do nada pra aquela imagem, que não tinha os contornos de um desenho ou o espectro limitado de uma pintura ou as irregularidades de uma colagem, que era nítida o suficiente pra dar a ver tantos detalhes sem deixar
de ser tremida demais pra que qualquer deles fosse isolável — que era uma foto, mesmo não sendo, mesmo me importunando, eu especificamente, com a sua não-fotez. Estava escuro no meu quarto, de modo que eu atravessei um intervalo no qual tudo que havia à minha vista eram a foto
e as letras do cabeçalho do Reddit. A foto me pareceu não apenas uma foto, uma parte do mundo que eu não conseguia descobrir qual era, mas a totalidade do mundo; eu não conseguiria decifrar aquela foto porque nada jamais em toda a história da criação pôde ou poderia ou poderá ser
decifrado, e o que aquela imagem tinha de tão diferente dos meus arredores? E é claro que eu achei absurdo ter aqueles pensamentos, e comecei a sentir coceira na cabeça, e me perguntei se não estava tendo um derrame. Tentei afastar o pensamento, que provavelmente era fruto do
TOC, porque era impossível eu estar tendo um derrame. Mas eu também tinha achado impossível não reconhecer nada na foto, e depois tinha achado impossível que aquela foto não fosse uma foto, e agora eu já tinha olhado tantas vezes pra a foto que ela estava se sobrepondo a todas as
outras poucas imagens que eu tinha à mão da memória ali debaixo do sono das 6 da manhã, e nada daquilo fazia sentido, então eu fui correndo até o banheiro e sorri três vezes pro espelho. Não estava tendo um derrame. Voltei a dormir.
Na manhã seguinte, mostrei pros meus pais e pro meu irmão a foto. Eles não reconheceram nada, mas meu pai e meu irmão escarneceram da foto, dizendo que era muito fácil, em 2019, fabricar uma imagem em que nada era reconhecível, ainda mais tremida daquele jeito. Mas eles não
entendiam — eles não entendiam?? — que aquela era uma *foto*, era uma foto de alguma coisa, tinha que ser, porque era. E se era uma foto, era uma foto do quê? O que poderia ser aquilo? Qual era essa parte do mundo, qual era essa condição espaço-temporal em que as leis da física
e da química tinham de tal forma se concatenado a produzir *aquilo*, que era uma cena humana, tralhas amontoadas depois de uma festa, talvez presentes, talvez decoração, mas sem ser nada, e sem ser uma pintura, pois era uma foto? Uma foto do quê? Como era possível? Essa era a
mesma semana em que haviam viralizado no Ocidente centenas de vídeos humorísticos parecidos feitos por adolescentes indianos, e a minha timeline tinha enlouquecido com o absurdo inexplicável daquele fenômeno. Mas os vídeos, conquanto fossem indianos e compartilhassem de alguma
piada interna nacional que não nos fosse conhecida, eram no mínimo reconhecíveis — adolescentes fazendo caras e bocas. Se aquele era o limite, se aquilo era o absurdo, o que era aquela foto? Alguém seria capaz de explicá-la? A ciência? A informática? Eu comecei a duvidar mesmo da
capacidade dessas disciplinas ostensivamente racionais de responder às minhas perguntas. Tentei desconstruir cartesianamente a foto e a minha reação a ela, me perguntando o que distinguia os elementos visuais da foto, por que ela me causava tanto estranhamento onde outros
elementos visuais de outras fotos não causavam. Fiquei fazendo isso enquanto seguia meu dia, ia da cozinha pra sala, da sala pro banheiro; olhava em volta; olhava pras minhas mãos; o único resultado foi que todas as formas começaram a parecer completamente arbitrárias. Meu
raciocínio se afigurava positivamente incapaz de definir o que tornava as formas da pia e do rolo de papel higiênico, do meu nariz e da minha boca diferentes das formas na foto. Eu não me conformava, mas não tinha pra onde correr; o tuíte original já tinha chegado a 25 mil RTs e
60 mil likes e nada de alguém conseguir explicar. Uma nova pesquisa reversa me levou a threads mais antigas do 4chan — estaria eu tendo um vislumbre *daquela* internet, daquela parte que todo mundo sabia que era melhor não conhecer? Era aquilo? Era aquilo?? A pesquisa me disse
ainda que aquela imagem provavelmente tinha sido gerada por uma inteligência artificial, e eu fui imediatamente atingido por uma nova onda de pânico: que inteligência artificial era essa que tinha conseguido me perturbar tanto e tão profundamente? Nós já chegamos ao ponto da
grande curva humana em que nossos algoritmos compreendem o conceito de “imagem parecidíssima com um elemento do mundo real sem corresponder nem um pouco a esse elemento”? Essa percepção já não é intrinsecamente humana? Alguma coisa ainda é? Era melhor que aquilo tivesse sido feito
por uma pessoa. Mas se tivesse sido feito por uma pessoa, qual teria sido o ímpeto? Como era possível um intelecto organizar pixels daquele jeito tão sem parâmetro? O Google me reiterou que provavelmente era obra de uma inteligência artificial, e acrescentou que havia um site
chamado GanBreeder que era feito pra gerar aquele tipo de imagem. Abri o site, que era, de fato, abarrotado de imagens estranhas. Nenhuma tinha aquele je ne sais quoi d’A Foto; não importava, eu precisava descobrir se A Foto tinha vindo a existir por ali. Eu precisava descobrir se
ela tinha vindo a existir. Eu precisava entender. O site me perguntou “Which image is most interesting?” e me mostrou 18 fotografias. Eu cliquei na de um cachorro de pelo dourado.
Apareceu um botão escrito “Make children”. Eu cliquei nele, e apareceu uma segunda foto.
Cliquei de novo em “Make children”:
E em seguida:
E em seguida:
E em seguida:
E em seguida:
E em seguida:
E em seguida:
Fechei o Chrome, e desliguei o computador. Era melhor não entender.