A experiência de viajar de avião no meio da pandemia do coronavírus
Nos primeiros momentos da pandemia, com aproximadamente uma semana de quarentena oficial, me vi deparada com uma escolha difícil: Permanecer em São Paulo sozinha em meu apartamento durante a quarentena ou fazer uma viagem de avião para minha cidade natal, com todos os riscos que isso acarretaria.
Primeiramente, sinto a necessidade de colocar todos os fatos relacionados a essa decisão na mesa, para que conclusões precipitadas não sejam tomadas em relação ao que podia ser feito ou não.
Eu tenho 24 anos e sou de Salvador, nascida e criada; me mudei para São Paulo em 2019 para cursar na FAAP o curso que sempre quis, Animação. Moro em um apartamento sozinha, pois ainda não encontrei uma pessoa com quem pudesse dividir o apartamento. Tenho família em São Paulo, mas grande parte mora no interior ou são pessoas de grupos de risco. Boatos de que um aluno da FAAP teria pego coronavírus estavam circulando muito entre os grupos de WhatsApp. Estou em tratamento psiquiátrico com remédios para depressão e ansiedade desde 2018 e, duas semanas antes da quarentena começar, tinha terminado de tomar um dos meus remédios e estava começando a sentir os efeitos da falta dele no meu sistema. Minha mãe tem 58 anos e mora em Salvador com minha tia de 63 anos, que tem Síndrome de Down, problemas de desenvolvimento cognitivo, é obesa e, alguns meses atrás, teve um derrame que fez com que perdesse a função de engolir, precisando ser alimentada por sonda. Com isso, três enfermeiras também moram na casa juntamente com uma cozinheira que tem uma rotatividade quinzenal; minha tia sempre precisa de duas pessoas com ela o tempo todo, ou ela corre risco de vida. Com isso estabelecido, veio a situação.
As primeiras projeções da quarentena eram de que terminaria em maio. Seria uma coisa já bem ruim, mas eu fiz planejamentos e conversei com minha mãe: viajar para Salvador, passando por um aeroporto, seria algo muito complicado e perigoso, tanto para mim quanto para minha mãe e minha tia. Então eu resolvi ficar. Fui ao atacadão, comprei o que seria necessário para mim pelo período — sem compras de pânico ou exagero — passei três horas lavando todas as compras, combinei minhas sessões de terapia por videochamada e fechei a porta da minha casa com a intenção de só abrir caso precisasse pegar alguma coisa pedida por delivery. E assim fiquei por 11 dias.
Mas as previsões mudaram. A previsão agora era que a quarentena só terminasse em setembro.
Com a notícia, vários familiares ficaram preocupados e começaram a me ligar, pedindo que voltasse para Salvador. Eu genuinamente não queria, achava que o risco não valeria à pena, especialmente em relação a minha tia.
Houve, então, o anúncio da prefeitura de São Paulo do início oficial da quarentena, com a possibilidade de aeroportos e estradas fecharem. A pressão por parte da família aumentou muito, inclusive dos membros que são médicos e estavam trabalhando nos hospitais naquele momento. A pressão ficou tão grande que tive uma crise de ansiedade pesada e falei com meu psicólogo. Conversando com ele, ele disse que não achava que era uma boa ideia eu ficar sozinha no apartamento até setembro, especialmente no momento em que estava, quando tinha acabado de retirar um remédio do meu sistema. Com essa recomendação, eu comecei a conversar com minha mãe para ver como poderíamos fazer uma quarentena separada para mim em Salvador.
Por sorte, a casa da minha mãe tem dois andares, sendo há como subir para o piso superior por uma escada que fica do lado de fora da casa. Dessa forma, eu subiria para o andar de cima sem precisar colocar os pés dentro do térreo e ficaria isolada lá por quinze dias. Não há cozinha no segundo andar, mas eu não poderia usar a cozinha da casa de qualquer jeito durante o isolamento, então minha mãe decidiu cozinhar e levar a comida pra mim enquanto precisasse. Esta era a parte que mais me preocupava, pois eu não queria sobrecarregar minha mãe, mas ela insistiu, então eu aceitei. Procurei passagens — que, no momento, estavam assustadoramente baratas; nunca tinha pago apenas duzentos reais para viajar de avião para Salvador, especialmente comprando na véspera — , comprei e comecei a arrumar as malas.
Fiz a mala de mão para que precisasse mexer nela o mínimo possível, com carteira de identidade e cartão de crédito no bolso. Tentei comprar minha bagagem pelo site e por telefone, mas era quase impossível conseguir conversar com a companhia em qualquer um dos serviços — simplesmente tinha muita gente ligando — , então teria que comprar no balcão. Peguei materiais e livros da faculdade, alimentos que poderiam estragar se deixados lá e itens de valor emocional.
Acordei no dia seguinte com um e-mail avisando que meu vôo tinha sido adiado para dois dias depois. Entrei em pânico, porque nesse dia a quarentena oficial já teria começado e poderia não conseguir mais viajar e porque quando checava meu bilhete, ele continuava válido, com check-in feito. Tentei entrar em contato com a companhia aérea, com o aeroporto, com todas as lojas de todas as companhias. Era simplesmente impossível pelo número de ligações. A única coisa que eu podia fazer era ir direto para o aeroporto tentar resolver lá. Fiquei surpresa quando tentei chamar um táxi e tive o mesmo problema que tive ao tentar falar com as companhia aéreas, mas consegui chamar um motorista pelo Uber, cuja tela principal do aplicativo já confirmava que eu não estava saindo em um dia normal.
A parte mais importante na saída foi a roupa que eu usaria para viajar: coloquei calça e blusa de manga comprida, usando sapato fechado e luvas. Como não consegui comprar uma máscara em nenhuma farmácia por delivery, segui as recomendações de amigos e familiares médicos e coloquei um lenço grosso dobrado bem apertado cobrindo boca e nariz. O único que eu tinha era um lenço amarelo com elefantinhos estampados, então eu na verdade parecia mais um ladrão de desenho animado antigo do que qualquer coisa. Segui a outra recomendação, que foi a de enrolar o celular em papel filme antes de sair de casa, tranquei as portas e corri pro aeroporto.
A primeira experiência estranha foi com o motorista do Uber, que obviamente estranhou a minha roupa. Vi que ele me olhava o tempo todo pelo retrovisor. Ele me perguntou rindo se estava difícil conseguir uma máscara e eu disse que sim. Quando chegamos, agradeci pela corrida e pedi que ele ficasse seguro. Ele disse o mesmo.
Fiquei tensa ao entrar no aeroporto. Não só porque tinha toda a dúvida da passagem pra resolver, mas porque eu sentia que quando entrasse ali estava de fato entrando em uma área de alto contágio, mesmo sabendo que já poderia ser contaminada a partir do momento que saí de casa. Entrar no aeroporto parecia oficial, ainda mais que todos os espaços que normalmente tinham publicidade estavam com mensagens de alerta e prevenção do Coronavírus. Todos os seguranças usavam máscaras. Não tinha muita gente por onde entrei e achava que era assim que ia continuar, vazio, com poucas pessoas de máscara e luvas, até que entrei na área de check-in.
Tinha muito mais gente do que eu esperava, em vários estágios de proteção. Muitos de máscara, de cores e tipos diferentes, alguns cobrindo nariz e boca, outros com ela pendurada no queixo, outros cobrindo só a boca. Pessoas de máscara e sandália havaiana. Pessoas de luva sem máscara. Mães sem máscara com crianças de colo de máscara e vice-e-versa. Pessoas sem usar nada para cobrir rosto ou mãos. Não parecia que todos sabiam muito bem o que deveriam fazer de fato para se proteger do vírus, mas estavam tentando do jeito que achavam certo. Eu fiquei mais tensa.
Fui até o balcão de check-in e outra surpresa: nenhum dos atendentes de check-in daquela companhia usavam máscaras ou luva. Eu estranhei e quase perguntei ao homem que me atendeu, mas ele se virou pra mim com uma expressão tão cansada, diria até derrotada, que eu engoli a pergunta. Parecia muito pra mim que ele tinha se resignado a algo, mas não posso dizer que sei o que era, apesar de ter uma ideia do que poderia ser.
Questionei da questão da passagem e ele disse que estava tudo certo com ela, o que me deu um grande alívio. Provavelmente, um erro do sistema. Fiz meu check-in, paguei pela bagagem e agora tinha tempo amplo até meu embarque. Agradeci ao moço do balcão e desejei que ele ficasse bem e seguro. Ele me deu um sorriso pequeno e me agradeceu.
Com o tempo que tinha agora, comecei a andar pelo aeroporto de Congonhas até meu portão de embarque sem pressa e pude observar melhor o comportamento das pessoas das quais tinha só notado antes como estavam vestidas. Lembro que a frase que passou pela minha cabeça, quando vi como todos se portavam, foi “Meu Deus, o brasileiro não tá pronto pra essa pandemia”.
Um homem abaixava a máscara toda vez que ia conversar com sua esposa. Um menino com uma máscara azul folgada, sentado ao lado de sua irmã com máscara igualmente folgada, brincava com a máscara, tirando e colocando e rindo. Uma família, sentada numa mesa da praça de alimentação que estava aberta e funcionando — algo que me encheu de raiva e confusão do motivo pra aqueles serviços estarem abertos e os funcionários sem equipamento de proteção nenhum — , conversava com as máscaras apoiadas na cabeça, no queixo e soltas sobre a mesa. Ao lado desta família, vi um senhor colocar um copo de café na mesa, tirar a máscara e colocar em cima do copo, como se quisesse impedir que este esfriasse. Comecei a ficar nervosa e fui direto ao raio-x, cujos funcionários estavam todos de máscaras e luvas.
Quando cheguei ao portão de embarque, a fila para entrar no avião estava formada, sem nenhum tipo de distanciamento entre as pessoas. Cheguei a esperar um pouco para ver se conseguia ficar mais ao fim da fila, mas chegaram mais pessoas depois de mim, que ficaram muito próximas. Ao meu lado, no corredor, passou um casal de idosos que pareciam retirados de um filme de ficção científica: usavam máscaras e luvas, óculos de proteção, touca de cabelo, botas e roupas que cobriam todo o corpo. Me senti desprotegida ao lado deles. Ao passar pela aeromoça, ouvi ela comentar com uma senhora que tudo ficaria bem se ela obedecesse as recomendações de distanciamento e proteção. A senhorinha não estava de máscara.
Andando pelo corredor até o avião, vi um movimento à frente de duas pessoas e algo cair no chão. Quando me aproximei, havia uma luva usada jogada no chão. Mais à frente, uma máscara. E outra. E outra. Não podia mexer muito bem no celular por causa das luvas a esse ponto, mas consegui tirar uma foto, porque não conseguia acreditar no que estava vendo. Parecia que as pessoas achavam que agora que entrariam no avião, não precisariam mais delas. Guardei o celular no bolso e corri pro meu assento.
Todas as aeromoças estavam de máscara. Fomos informados ao entrar que o serviço de bordo estava suspenso por recomendações de saúde. As pessoas entravam aos poucos. Todos os relatos que li sobre os voos na quarentena diziam que estavam praticamente vazios. Não o meu; enquanto certamente não estava lotado, havia pelo menos uma pessoa por fileira. Havia um senhor à minha frente e duas senhoras atrás de mim. Torci muito para que ficasse sozinha na minha fileira e fiquei aliviada quando foi o que aconteceu. As portas fecharam, o avião decolou.
Eu tenho medo de avião, mas sendo bem honesta, o voo em si foi o momento em que menos me senti tensa durante todo o trajeto daquele dia. Não conseguia parar de pensar no que tinha visto no aeroporto. O despreparo de muitos, o descaso de outros, pessoas rindo até das outras e fazendo piada sobre pandemia. Eu fiquei com medo, mas não da viagem que fazia, como me é de costume. Fiquei com medo do que viria nos próximos dias, cuja previsão era de piorar a situação. Pensei na minha família e amigos. O avião pousou.
Tentando evitar a aglomeração da fila do embarque, decidi esperar para sair do avião. As pessoas saíam lentamente pela frente quando, de repente, um grupo de mulheres vestidas com roupas especiais de limpeza com a logomarca do governo do estado entrou pelo fundo do avião e começou a desinfetar todos os assentos, um a um. Eu já viajei bastante e muitas vezes já fui a última a sair da aeronave e nunca tinha visto nada parecido. Me senti pressionada a sair para não atrapalhar o trabalho delas. Eu tirei uma foto rápida e saí.
Fiz questão de pedir o motorista de táxi mais novo que o serviço do aeroporto tivesse e perguntei a ele se ele estava em algum grupo de risco antes de entrar. Não lembro de seu nome, mas lembro que tinha quarenta e dois anos, um bigode com alguns fios brancos e estranhou muito as perguntas que fiz antes de explicar o por quê. A viagem foi silenciosa até minha casa dentro do táxi, mas só do lado de fora. Na minha cabeça, todas as informações daquele dia estavam rodando em alta velocidade pela minha mente. Mal sabia eu, quando desejei ao taxista que ficasse seguro na medida do possível quando me deixou na porta de casa, que eu ficaria com todas aquelas questões na minha cabeça até hoje.
Carolina Martins da Costa Assaf, aluna do 3º Semestre do curso de Animação da Faculdade Armando Álvares Penteado