as viagens no tempo (não literais) que a gente faz de vez em quando

Por Letícia Ohfugi

Letícia Ohfugi
Iandé
3 min readMay 14, 2020

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Sinto a brisa do ventilador. O cheiro do aromatizador que minha mãe tanto gosta de passar na sala, o tecido macio do sofá. Escuto o latido dos cachorros lá fora, e o som do vizinho tocando algum sertanejo universitário recente. É a sensação de estar em casa; aconchegante, confortável, seguro. Pela primeira vez em semanas, me vejo distante dos problemas do mundo lá fora.

Decido abrir o meu livro. Devo ter lido ele pela primeira vez uns dois anos atrás, mas não me lembro de quase nada da história, senão alguns trechos dispersos. Entre as páginas, um desenho muito antigo feito por uma amiga minha na época do ensino médio; em um post-it velho com uma caneta azul, a pessoa desenhada sou eu, na época com os cabelos coloridos, moletom do colégio e óculos de grau. Me traz lembranças de dias gostosos, calmos e tranquilos.

É engraçado pensar que escolhi esse livro sem pensar muito na história dele. Ela basicamente gira em torno de um cara que decide se isolar nas montanhas, na antiga residência de um pintor famoso. A pessoa mais próxima dele está em uma casa vizinha, do outro lado de um enorme lago. Ele passa semanas vivendo assim, com pouquíssimo contato com outras pessoas.

Eu juro que não foi proposital.

O dia vai escurecendo, e eu estou ali, na sala de casa lendo um livro. Escuto o som da minha irmã assistindo alguma videoaula no quarto, o vizinho desligando a caixa de som. Sinto o meu cachorro se aninhando nos meus pés.

Entretanto, um cheiro diferente. É o mesmo cheiro daqueles quiosques de shopping que vendem amendoim; minha mãe é completamente apaixonada por essas coisas e toda vez que vamos no shopping ela volta com um monte desses. Em seguida, o som de várias músicas tocando, vozes passando por mim e indo embora, um turbilhão de pessoas dizendo várias coisas diferentes.

Tiro os olhos do meu livro. Não estou mais no sofá de casa, e sim em uma poltrona gelada de shopping. Nos meus pés não há mais meu cachorro, e sim um tapete felpudo bege, e na minha frente está sentado um cara que eu nunca vi na minha vida. De vez em quando, sinto a brisa gelada do ar-condicionado da loja ao lado bater nos meus braços.

É um shopping de Ribeirão Preto, no final de 2018. Estou esperando minha mãe sair de alguma loja aleatória do corredor, e decidi ler um livro que comprei na livraria ali em frente, dez minutos antes. A nota fiscal ainda está entre suas páginas.

Tiro da bolsa aquele desenho que minha amiga fez de mim. Uso ele de marca-página, e decido fechar o livro. Fecho os olhos e escuto com mais atenção os sons que vêm das lojas, e os trechos dispersos de conversas alheias; presumo que a maioria delas discute o que vão comprar de presente para suas famílias e amigos, enquanto os sons de músicas de natal preenchem meus ouvidos. O cheiro do amendoim ainda está lá, mas acho que alguém passou ao meu lado com pipoca de cinema, aquelas pipocas bem amanteigadas, do tipo que deixam as mãos todas sujas depois de comer. Sinto o couro gelado da poltrona tocar na minha pele, meus pés passando pelo tapete, o livro fechado sobre meu colo.

Não pensei que sentiria saudade dessa época, muito menos de estar em algum lugar barulhento e lotado de gente desconhecida. Dessa vez, o sentimento é bom; o dia me parece calmo, a vida parece boa.

Abro os olhos. Estou de volta no sofá de casa, com o meu cachorro deitado nos meus pés, o sol se pondo lá fora e um silêncio comum de fim de tarde. Nas minhas mãos, o desenho da minha amiga.

Nunca tinha entendido direito o porquê de eu carregar esse desenho por todo lado, ela com certeza já fez alguns traços melhores do que esse, feitos em uma aula entediante com caneta Bic. Talvez agora eu entenda. Carrego sempre comigo uma lembrança simples e banal de uma época mais tranquila. É uma maneira de não me esquecer dos pequenos detalhes, dos momentos banais, da serenidade que a vida oferece de vez em quando.

Decido me levantar para comer alguma coisa. Viagens no tempo são cansativas.

Ilustração feita pela amiga mencionada no texto, Marina Gomes (@marinagomesarte no instagram)

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