asma e vinagre

Victor Moretti Algarve Gregorio
Iandé
Published in
2 min readOct 13, 2018

Eu estava sentado em uma calçada suja. Tinha uma desconhecida nos braços. Ela convulsionava e babava. Saliva e água. O cheiro de vinagre permeava nossos olhares.

Ao longe ouvíamos gritos e bombas estourando, mas era longe. Perto estava o medo. Enquanto tentavam arrancar o casaco dos braços moles da garota, eu segurava sua cabeça, que pendia ora prum lado, ora pro outro. Era uma mistura de mãos, falas, catarro e olhos vermelhos. Eu e ela no centro.

-Passa o vinagre na cara dela.

-Não, ela já não tá conseguindo respirar.

-Passa o vinagre porra!

-Ela vai sufocar de vez.

Gritos demais, medo demais. Ninguém decidia o que fazer.

-Liga pra ambulância.

A garota abre os olhos e sacode os braços. Fala sem voz:

-Não, não, ambulância não.

-Joga uma luz ai, quem tem uma luz?

Pela primeira vez consegui ver seu rosto. Devia ter uns 17 anos, as pontas do cabelo descoloridas. O rosto estava vermelho e os olhos não se abriam: frestas vermelhas e veias estouradas. Balbuciava.

-Meu celular, alguém viu meu celular?

-Acha o celular da mina ai.

-Você quer ligar pra alguém?

-Já chamaram a ambulância?

A garota tentou se levantar. Gaguejava não, não, não e mexia os braços desesperada.

-Eu não posso ir pro hospital, não posso, não deixa, cadê meu celular?

-CADÊ O CELULAR DA MINA?

-EU NÃO SEI, PASSARAM A MÃO.

-Você quer ligar pra alguém? Onde tão seus amigos? Você tava com alguém?

-Correram quando começou.

Algumas pedras caíram do bolso do casaco. Olhei pra ela e olhei em frente. A polícia havia fechado a entrada do terreno. Duas pessoas com mochila vinham em direção à grade.

A garota tentava enxergar ao redor, seus olhos fechados de gás. Só se via vermelho e desespero. De repente, as tremedeiras voltaram a ser convulsões e ela parou de falar.

-Fica calma.

-Dá água pra ela.

-Ela não tá conseguindo beber.

-Cadê o vinagre.

-Chega de vinagre.

-A gente é socorrista, o que que aconteceu?

-A PM começou a soltar bomba e encurralou todo mundo. A gente conseguiu vir pra cá e ela desmaiou.

Viraram ela de lado. Alguém gravava tudo. Sufocávamos.

-Eu tenho asma.

Um helicóptero passou. Uma das socorristas tirou uma bombinha e colocou na boca dela. Inalou.

-Segura o ar.

-Segura o ar.

-Ela não tá segurando.

Taparam a boca dela.

-Segura o ar.

-A gente tem que continuar. Fica um pouco com ela, espera cinco minutos. Se ela tremer é normal, é de asma.

Foram. Sua cabeça cambaleava. Meu nariz escorria.

-Qual o seu nome?

-Jéssica.

-Quantos anos você tem?

-17.

-Quer que a gente ligue pra alguém?

-Não, não liga. Eu acho alguém.

-A ambulância tá vindo.

-Não quero.

Ela tentava se levantar e a gente segurava. Passaram cinco minutos, ela levantou e seguiu a avenida, cambaleando e cuspindo.

Olhei ao redor. Luzes vermelhas piscavam. A polícia tinha saído da frente do terreno e ido para o outro lado da avenida. Olhavam para nós. O trânsito continuava igual. Uma BMW passou acelerando. De longe se ouvia um violão.

-E eles nem pra ajudar.

-Tem que tomar pra entender.

-Quer um cigarro?

-Tô precisando.

Bombas ecoavam em algum lugar.

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