BOTE RÁPIDO E FATAL NO TEMPLO ELETRÔNICO DA PARALISERGIA

Luca Salla
Iandé
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6 min readApr 25, 2019

Sentado no sofá, contemplo a televisão e enrolo alguns baseados. Uma antecipação crescente é sentida em minha barriga como um vôo de mariposas, extasiadas pela expectativa. Janto e vou até o quarto. Coloco uma calça. Duas calças. Esta é a calça certa; e essa blusa também combina. Falta um casaco. A pochete carrega o fumo, a identidade e o dinheiro. O aplicativo me avisa que meu carro já está me esperando.

As mariposas continuam voando; pouco a pouco, tornar-me-ei amigo delas. O som da estação de rádio é substituído pelo barulho industrial do elevador. A porta se abre — por trás desta, o techno abafado, tornado música ambiente pela força do hábito. Em um sofá, um fuma um cigarro. No quarto, o papel é recortado, em pedaços bem pequenos, seus desenhos tornando-se meros fragmentos de cor e contorno. Na cozinha, parte-se a bala — tão bonita em sua aparência que leva dó a seu consumo. Zip-lock e papel alumínio embalam os produtos guardados nas pochetes. Garrafas de água na mão, pois afinal, hidratação é tudo. As luzes coloridas se apagam, todos dão adeus à gata, que fica no apartamento. Um novo carro já chegou.

Avenidas vazias. Andar de carro pela cidade de São Paulo durante a madrugada sempre teve seu charme. São 11:30 da noite — madrugada me parece um exagero, mas estávamos todos à beira da ignorância sobre o conceito de tempo (pelo menos por algumas horas).

O carro estaciona em uma rua normalmente vazia. É escondida e me remete a uma parte abandonada do espaço urbano. A fila, já formada na entrada, me apresenta os primeiros tipos humanos a compartilharem da experiência análoga e independentemente a mim (fora aqueles com os quais contava pela minha própria diversão): nenhuma palavra, ao menos na minha concepção, se encaixa tanto no contexto como queer — a ideia do indivíduo que vive uma vida desvinculada do padrão heteronormativo de sexualidade e binarismo de gênero. Visto pela minha escolha de roupas, um clubber padrão em calça preta justa e jaqueta impermeável; visto na escolha de roupas alheias, uma maior liberdade corporal de exposição, consciência de movimento e diversificação de cortes e tecidos. A maquiagem artística de cores primárias e fortes vinculadas a brilho, ou a escolha pela máscara, e esta aliada a uma fantasia. Voltaremos as fantasias mais para a frente, não como fantasias tanto quanto alter-egos, ou simplesmente egos nascidos do auto-conhecimento (ou a falta deste).

Na fila. Os baseados são tirados das pochetes e depositados em botas e sapatos de cano alto. Pílulas, lindas ainda que partidas, alojadas em sutiãs. Os seguranças revistam a todos, em uma busca sarcástica e irônica. Nada é encontrado, talvez nem ao menos procurado. Um espectro de luz vermelha atravessa um grande pátio e desenha tantas silhuetas, enquanto a Vila dos Galpões se apresenta como o palco teatral do abandono urbano, do esquecimento e principalmente, da reocupação, regada pela água sintetizada e pela batida eletrônica. As garrafas de água são abertas, os zip-locks recuperados. Acaba em um instante: o gosto amargo do ecstasy que dissolve na boca é rapidamente dissipado pelo grande gole. As mariposas batem suas asas mais fortes, mas agora já não me estranho tanto com a energia que produzem: espero por mais, cada vez mais. Inicia-se aí a sensação interminável do pré-gozo, da qual torno-me refém.

Meu corpo é refém pois acompanha o ritmo frenético de uma forma quase como ancestral e natural — a Epidemia da Dança visualizada na contemporaneidade — e meu olhar é guiado pela luz, que pisca e se transforma, e pelos anônimos que me cercaram. Meu intelecto, também refém: a cadeia de pensamentos é intensa, de uma fluidez que beira a falta de sentido completa, e quando não beira, altera a própria realidades. São altos e baixos, literalmente, em picos de endorfina, adrenalina e ansiedade, quando o cenário propõe-se a tal.

Nestes momentos, me assusto com a chuva.

Um daqueles simpáticos oferece uma dose de ketamina para a roda completa; a ansiedade e certa sensação de completude provinda do MDMA juram minha recusa. Vinte minutos de transcendência para aqueles que ingerem o tranquilizante. Leve vômito. Um cigarro, em um ambiente aberto. Prontos para a pista.

Sequência interminável de DJs, e não noto suas trocas pois detenho minha atenção as pessoas que ocupam o enorme salão do interior de uma fábrica abandonada. Acaricio meu braços, pois o toque ao meu próprio corpo fica prazeroso. Um novo drop, e renovação de movimento. Um homem, de cabelos longos e musculoso, dança sem camisa em consonância ao movimento de seu tecido vermelho. Um dos nossos está sóbrio e mantém o ânimo daqueles alterados, o que só me parece um nível maior de adoração pela própria música e cultural dance — não consigo me imaginar ainda em tal estágio. No palco, uma performance. Uma mulher, uma pessoa, transfigurada na figura de um corvo. Ela distribui ovos e carrega suas asas e penas, a máscara/prótese facial lhe confere uma aparência vertiginosamente extra-humana. A realidade se altera mais uma vez. Todos parecem usar máscaras. Saio para um cigarro.

A piscina estourou. Uma piscina de plástico no meio de um dos pátios, estourou e alagou o espaço. Ilhados, fumamos um baseado. Talvez dois. Antes isso do que chuva.

Amanhece. Posso ver o rosto de cada um. Não usam máscaras, e isso me acalma. Me parecem loucos, mas me sinto louco. Um cansaço, periodicamente, conversa comigo e me gera desconfiança. Mas novos picos expulsam o cansaço. Uma última apresentação. Techno, lírico ao vivo, e performance em dupla. Um homem alto, negro e seminu carrega sua a vocalista, que cobre seu corpo com um tecido prateado expondo apenas sua vagina, além de seu rosto. Canta energeticamente, a energia se renova cada vez mais. Quatro anônimos se fantasiam a moda cyberpunk gótica. Inalam todos um pó branco, e se abraçam. Muita energia; sobrecarregado. Um cigarro. Só tenho mais dois cigarros.

Uma última música. Uma das favoritas. Último momento na pista, e o performer está no chão, junto ao seu público. Com o suor de um maratonista brilhando eu seu corpo, encara fixamente cada um que está por perto. Abraça uma das nossas. Intensidade alta, mas confusa, conflitante. As mariposas voam cada vez mais caoticamente. Desejo por descanso, dúvidas perante o divertimento.

Um novo carro já chegou. Um dos nossos está em colapso na calçada, travado em si mesmo. Uma última conversa no carro. Sim, foi uma bela noite. E sim, tudo isto é muito forte, e deve-se cuidar. Mas como é bom, não é? É. Mas será?

As mariposas já não voam, mas também não consigo meu descanso. São trinta e seis horas de privação total de sono. De péssima alimentação também. Imunidade baixa, doente por uma semana. Preocupado comigo mesmo, mas também feliz, pois a adrenalina seguida da segurança é uma das sensações indescritíveis da vida, nas pequenas e grandes coisas. Nas certas e erradas. Mas por que passar por isso de novo? Meu corpo, minha cabeça, meu humor… Uma semana de contemplação e paranoia, repressões imaginativas e obsessão imagética. Melancolia, e saudades. Sempre saudades. E sempre medo — mas medo pode ser tão bom.

fotos retiradas do instagram @mamba.n

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