Nessas últimas semanas todos nós estamos nos sentindo fragilizados, talvez porque lá fora sabemos que algumas milhares de pessoas estão morrendo a cada dia, e o mais simples toque de mãos que alguns meses atrás nos trazia força e segurança hoje pode significar a diferença entre a vida e a morte.
De qualquer maneira, quando estou me sentindo atordoada e não consigo mais distinguir meus pensamentos uns dos outros porque eles parecem ter sido varridos por uma fumaça que ameaça me sufocar, eu costumo olhar para o céu e pensar que os pensamentos são como as nuvens, atravessando lentamente a minha consciência como se deslizando sobre o céu (clichê, eu sei, mas os clichês costumam ser verdadeiros).
Nem sempre isso é possível, pois como as pessoas que sofrem de ansiedade bem sabem, os piores pesadelos acontecem quando estamos acordados e não enquanto estamos dormindo, mais especificamente no limite entre esses dois estados. Insônia tem sido uma constante quase reconfortante durante a incerteza desse período de quarentena, o movimento de rolar de um lado para o outro na cama concretizando uma rotina nos intervalos de tempo em que eu não estou encarando o teto ou o brilho do relógio digital no escuro da madrugada.
É nessas horas que eu costumo andar até a cozinha na ponta dos pés e abrir a geladeira em busca de algo, mais para preencher algum vazio existencial do que por qualquer necessidade física. Eu cubro meus olhos com a mão para protegê-los da luz que vem de dentro da geladeira, enquanto a cachorra da minha irmã levanta a cabeça do lado da porta e ergue uma orelha, como se dizendo: “Você de novo aqui, criança? Vai dormir de uma vez, pelo amor de Deus” (uma personificação, obviamente cachorros não precisam de religião). Eu dou de ombros, como se respondendo: “Pois é Fionna, como a Jéssica costuma dizer: esse é o caminho da miséria”.
Assim eu me sirvo um copo d’água, se eu estiver animada talvez até prepare um chá. Com o copo na mão eu abro a porta para a área de serviço, minhas gatas nem se incomodam em abrir os olhos enquanto dormem abraçadas tranquilamente no quartinho da empregada. Com cuidado eu subo na tábua de passar roupa e, apoiando as mãos na beira da janela, me levanto para sentar na pedra fria do que gostamos de chamar “solário dos gatos". O vento é frio contra a malha fina do meu pijama, mas eu me deleito com a sensação. De repente, é como se o ar voltasse a encher meus pulmões com a ajuda da brisa, e eu posso respirar fundo novamente.
Mas o que toda essa história tem a ver com o céu, afinal? Bem, como eu estavam dizendo anteriormente, o céu é uma das poucas invariáveis do universo. Não importa onde estamos ou o nível de desamparo que sentimos, nós sempre podemos olhar para cima e encontrar o céu, certo? Errado. Por alguma decisão trágica do destino, eu moro no primeiro andar de um prédio de 12 andares situado entre dois prédios maiores que só possui janela dos lados. Não importa o quanto eu tente virar o pescoço para o sul, norte, leste e oeste, tudo o que eu consigo avistar é uma dor de torcicolo chegando.
Se eu for falar bem a verdade, desde que eu me conheço por gente (eu provavelmente nem sequer me conheço, mas gosto da expressão) eu sou fascinada pelas estrelas. Meu sonho de infância era ser astrônoma, para poder olhar para elas o dia inteiro. Mal sabia meu eu de 10 anos que essa profissão infelizmente ainda não foi inventada. Há uma verdade no brilho dos astros que é difícil de descrever, mas todas às vezes em que eu olho para eles eu sinto uma paz singela e absoluta.
Pois bem, nós já sabemos há muito tempo que em São Paulo não existem estrelas, a única constelação presente na metrópole é o conjunto formado pelos pontos de luz artificiais dos prédios e automóveis ao longe. “A cidade que nunca dorme" é uma designação apropriada para uma cidade cujo dia nunca se transforma em noite por completo. Na realidade, esse texto é mais um desabafo do que uma linha de raciocínio desenvolvida, então na medida em que me aproximo do final, me esforço para pensar em uma conclusão que faça valer a pena essa volta toda, portanto não esperem algo incrível.
Acho que no fundo o que eu quero expressar aqui é que, além da irônica frustração de uma pessoa sedentária forçada a permanecer enclausurada, pela primeira vez na história estamos completamente desconectados da natureza, e eu não quero dizer somente por conta do isolamento social. Não, essa pandemia simboliza a divisão definitiva entre ser humano e meio ambiente que começou a ser imposta milhares de anos atrás pela ganância dos nossos antepassados. Esse novo vírus foi apenas a gota d’água, o clímax do filme da civilização humana.
Todas essas doenças mentais, todas as pragas que hoje assolam a humanidade são resultado das nossas ações em relação ao mundo a nossa volta. A resposta está na natureza, não fora dela. Somos uma espécie única, nos destacamos das demais por nosso complexo de superioridade crônica ao resto do planeta. O homem foi apresentado com a oportunidade de acordar para o fato de que precisa descer de seu cavalo alto de uma vez por todas.
Espero com todo o meu coração que essa pandemia já tenha causado estrago o suficiente para convencer nossos líderes políticos (não citarei nomes, vocês sabem quem são) de que a sociedade como um todo se encontra agora em uma encruzilhada: precisamos escolher entre o caminho que leva a nossa extinção total e aquele que nos conduz ao verdadeiro progresso. Não é muito difícil após este texto altamente ideológico deduzir qual é qual.