Carta do exílio

Lena Araújo
Iandé
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3 min readOct 17, 2017

São Paulo, 22 de setembro de 2017.
Porra, São Paulo…

Lucas, meu menino,

Nunca me acostumarei às primaveras. Aí, a um grau ao sul do Equador e muitos graus a oeste de Greenwich, à exceção da cor pontual dos bichos, tudo é verde ou marrom. Talvez nós, amazônicos, enxerguemos mais tons de verde do que a maioria das pessoas, assim como os esquimós têm muitos nomes para o branco. De nomes, não precisamos. Me surpreende que tenhamos língua quando bastam-nos os olhos a delatar a quantos exatos dias os frutos estão da maturidade ou estão as folhas de turvarem-se barrentas como os rios. Barrento. É por aí mesmo, mas sem a balela cristã, que Tupã nos basta. Do barro das nossas águas vem toda a vida. Vai saber, talvez tenhamos língua pela poesia.

Lembro da primeira vez que ouvi um ipê. Era um escândalo. Cinza-vivo caatinga até onde a vista alcançava e aquele amarelo abre-alas bem lá no meio. Que espanto. Roxo, depois. E rosa, e branco. Cores, e mais de um nome para elas. Os ipês sempre me gritaram. Eram o prenúncio da chegada. Foi naquelas viagens à Bahia, naquelas estradas de terra intermináveis cravejadas de estrelas e sapos suicidas, marcadas pelo compasso dos postes de luz a me cegar do ninho que mamãe fazia pra mim no banco traseiro do carro. Ipês, Lucas. Que escândalo. A Bahia ficou na infância, mas ainda lembro com espanto das cores. Era como se até ali eu tivesse sido daltônica. As cores da minha família de lá; a pele preta da bisa, o cabelo loiro da vó. As bandeirolas de São João, o sol do dendê no prato, os orixás e patuás. Ah, o azul do Atlântico. Azul! Água azul e areia branca. O que é oceano, o que é sal? Cresci sem conhecer o sal na pele, cresci sem conhecer o sal da terra. Com o privilégio de habitar o paraíso. As cores também podem matar.

Hoje, sal sem oceano, cinza-morto, moro em São Paulo. Aqui, as pessoas acham que sou do nordeste. Vai ver é por não conhecerem tantos tons de verde. Daltônicos, tudo lhes é cinza. Daltônicos, não percebem os ipês. E não sei dizer: se um ipê grita e ninguém o escuta, teria havido realmente a sua cor? Eu sempre ouvi as flores. Na semana passada, do ônibus, ouvi esses menestréis precoces a anunciar a primavera neste mundo definido. Aquele poema do Rilke retumba intempérie em mim. Aqui, as primaveras parecem precisar de nós para acontecer. “Em setembro não chove”, disseram-me hoje. Como pode, meu bem, um mês inteiro decidir-se pela hidrofobia? As águas parecem esperar pelo primeiro ser humano que as note. Eu, filha de Iara, pirá-açu, não me acostumo a uma chuva que siga ordens humanas.

E se aqui tudo é antípoda, se tudo chega aos sentidos ao avesso, a memória também segue outras leis. Em outros tempos, não fosse pelas marcas das águas nos igapós a indicar cheias e estiagens, como saberíamos a nossa idade? Teríamos idade na Amazônia? Ou seríamos fluxo constante, rio-pessoa, ‘y-abá? Me espanta que aqui se saiba a própria idade pelas flores. Se toda memória é poesia particular, se em tudo assemelha-se à poesia por depender dos sentidos e constantemente ressignificar-se, a poesia do Equador é epopeia. Aqui, todo dia ganho um novo haikai. Defino eu também a natureza. É, meu amor, as cores da primavera definitivamente vão me matar. Não sei se um dia me acostumo às estações do Trópico de Capricórnio.

Sempre tua,
Lena.

[Lena Araújo — 41621184]

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