Choque

Pedro Junqueira Caldas Marques
Iandé
Published in
7 min readDec 7, 2019

“Muitas vezes tentamos antecipar o futuro, saber o que estamos prestes a viver, prestes a contemplar, antecipar uma experiência visto a uma ansiedade do ser humano diante do mundo, ás vezes chegamos perto, nossa imaginação de certa modo reproduz um mundo plausível, mas os momentos que nós pegam desprevenidos, talvez sejam os que detém maior potencial de nos chocar, nos fazer enxergar o que antes nunca se mostrou visível.”

21 de Agosto de 2017

Segunda Feira

Na noite anterior havia acabado de chegar de viagem, 4 horas de estrada, minha primeira viagem dirigindo, mas isso para essa história não é relevante. Era apenas uma viagem em família que chegava ao fim. Eu fui direto para cama estava exausto, assim como minha mãe, ela tinha trabalho no dia seguinte e eu o cursinho, aquele lindo momento que todo adolescente sonha em experienciar. Antes de chegar em casa deixei meu pai no bar, estava para reencontrar alguns amigos de longa data, não lembro ao certo se eram de sua infância ou da faculdade. Enfim, noite de Domingo, pedir pizza e descansar, pois, uma nova semana de estudos estava prestes a ser retomada.

04:13

Acordo repentinamente com um estrondo de uma porta se chocando contra a parede, tudo ainda estava escuro, mas pelo som imaginei que fosse pela cozinha. Rapidamente me levantei para saber o que estava acontecendo, apenas liguei a luz do corredor e me dirigi para o possível provocador do som; naquele momento não esperava o que encontrar, foi apenas um movimento automático visto que aquilo já havia me alertado.

Quando cheguei a entrada da cozinha, ainda completamente escura, encontrei meu pai deitado no chão. Nesse momento antes mesmo de raciocinar vejo minha mãe ao fundo do corredor abrindo a porta de seu quarto, claramente estava confusa, seus olhos faziam esforço para acordar.

Nos deparamos com meu pai deitado no chão; minha mãe logo toma a dianteira, o sacode e chama por seu nome, grunhidos e sons similares ao roncar/respiração são as únicas respostas que tínhamos. Me providenciei de acender as luzes, mão conseguíamos ver o que estava acontecendo, a luz do corredor ainda era a única que havia sido acessa.

Ao acender, meus sentidos categoricamente mudam por completo, por um instante um zumbido estoura em completo eco dentro de minha mente. A parede que vejo todo dia branca devido as suas lajotas, agora se encontrava com um borrão de sangue. Minha visão se desloca, vertigo. Em um relapso me senti distante de tudo.

Instantaneamente sinto o choque que acabara de me ocorrer atingir minha mãe. Sua voz se torna tremula, se afasta e continua a pronunciar palavras, que no momento nem fui capas de processar, apenas senti a carga do choro presente em todo seu corpo.

Em uma fração de segundo, no simples lampejo da luz, no clarear do ambiente, tudo se transformou. “PAI!” A única palavra dita antes de repentinamente/institivamente me bloquear de qualquer sensação presente; sua cabeça se encontrava no foco de uma poça de sangue que aumentava gradativamente.

Ficou claro para mim que o choque atingiu minha mãe como uma faca, a emoção do que acabará de presenciar tirou ela de circulação. Me vi diante tudo. A noção da morte e me sentir sozinho diante de tudo que acontecia ao meu redor me moveu a fazer o que tinha que ser feito.

Mãe. Ela tinha que sair dali. Tinha que distancia-la daquela imagem. Seria o primeiro passo para acalma-la e tela de volta comigo. Precisava de sua ajuda.

-Telefone, Mãe. O Telefone — uma ordem, consegui induzi-la para o quarto.

Pai. Pai? O Que fazer? Como devo agir em uma situação como essa? Tenho que fazer algo.

O levantei e apoiei na parede. Tenho que proteger sua cabeça. Pensei. Sai correndo para meu banheiro, lá acharia toalhas o mais rapidamente, e tolhas que aguentassem o sangue.

Voltei em segundos. Minha mãe também.

Estava parada no corredor, catatônica, com o celular em suas mãos, soluçando.

Corri por ela, cheguei a cozinha e meu pai havia caído novamente, se encontrava agora do lado oposto da primeira posição.

Tentei deita-lo forma correta, nunca havia sentido seu verdadeiro peso, me preocupei mais com a cabeça. Vi pela primeira vez seu cabelo molhado grudento devido ao sangue. Pressionei a toalha e o apoiei no chão. Minha mão estava vermelha.

-Onde que eu ligo? Pra quem a gente liga? — ouço aos soluços

Para onde ligar? Pedir emergência é claro. Mas como? Só me lembrava do número da polícia e dos bombeiros. E naquela situação, me sentia na corrida contra o relógio.

-190 Mãe. Lá eles sabem te transferir.

-Alô…. meu marido…. a gente….

Não havia como, seu estado estava difícil de formar ideia, transmitir o que sentia. Ainda soluçava. Pedi o telefone e consegui o número. 192.

SAMU. Tentei me expressar da forma mais clara que consegui o ocorrido. Não sabiam informar quanto tempo levaria o resgate, que nem veio a ocorrer. Depois de ligarmos 3 vezes e esperarmos 40 minutos, perdi a “fé” de que aquilo era uma opção. O único alcance que tínhamos era perguntar o quão consciente ele estava. E que sinceramente, naquela situação. Pouco Importa. Como se mede a consciência de alguém que sofreu uma concussão?

Minha mãe estava conseguindo se acalmar aos poucos. Ainda me permanecia estimulado. Certamente meu corpo sofria um pico de adrenalina. Precisava resolver, dependia de mim. Mas certamente me via limitado a qualquer ação.

REGINA, uma amiga próxima deles que também mora no mesmo apartamento. Ela era a mais próxima que sabia que poderia contar. Quando liguei foi difícil. Não sabia como explicar aquilo tudo, por um instante tudo havia sumido e novamente recapitulado, outro choque, dessa vez a emoção tentou ser transmitida por um próprio soluçar, mesmo assim consegui falar que precisava de ajuda, mas minha mãe tomou para si explicar melhor a ela.

Ambos ela e seu marido desceram, mas ele preferiu não chegar perto, pois era capaz de passar mal ou até mesmo desmaiar. Na hora fiquei muito puto. Seu amigo está morrendo de certa forma e nada se faz? Como assim? Hoje em dia percebo que talvez tenha sido melhor assim. Eles junto a minha mãe ainda falam sobre esperar a Samu, se ela ainda era uma opção. Eu estava farto de esperar. Tomei a frente de que devíamos leva-lo para o hospital, nós mesmo.

Meu pai estava acordando, tentava colocar a mão na cabeça, onde havia ocorrido o impacto, não sabia muito bem o que estava acontecendo, mas felizmente ele estava retomando os sentidos. Visto que ele parecia estar reagindo aos estímulos, tomamos medidas. Tiramos sua camisa que naquelas circunstâncias estava ensanguentada. Decidimos estão leva-lo ao hospital.

Para isso pegamos uma cadeira com rodinhas, seria impossível carrega-lo apenas com os braços. Apesar da dificuldade conseguimos. O que me marcou foi o fato de na hora de partirmos, estipularam que eu deveria permanecer em casa, visto que seria melhor, amanha ainda tinha que estudar. Discordei. No instante que me via desconectado da situação a emoção sentia a emoção aflorar novamente, me controlei. Estabeleci que iria para o hospital.

PRONTO SOCORRO. Depois das dificuldades de chegar ao carro e todo o processo da viagem, ao chegarmos ele já apresentava estar mais consciente, já havia acordado, mas claramente desorientado, não conseguia com certeza o que estava vivenciando, ainda assim, conseguia responder ao formulário/testes do paciente. RG. CPF. CEP. Nome. Causa. Etc.

7:00

A noite parecia finalmente chegar ao fim, por volta desse horário estava retornando a casa. Sozinho. Tive de limpar toda a sujeira que permanecia no local. Ainda tive que ir estudar, o que de fato nunca aconteceu, diante da vivência ainda me via voltando para a mesma situação, de fato a aula não conseguia prender minha atenção.

Mesmo tendo chegado acordado no hospital, tudo ainda demoraria mais terminar. Permaneceu hospitalizado mais de uma semana, entre recorrentes baixas, vômitos e preocupações. A análise geral havia constatado uma concussão com dois focos de sangue, na parte traseira onde de fato ocorreu o choque e uma no lobo frontal, fruto de um segundo choque causado pelo impacto da volta do deslocamento do cérebro.

Essa segunda bolha de sangue era a mais preocupante, pois era incerto seu desfecho, era necessário esperar para concluir se o sangue se dissiparia sozinho ou se seria necessária uma operação. Com o tempo tudo deu certo e a recuperação ocorreu. Destaque para um efeito colateral. Meu pai perdeu o olfato, e com isso grande parte do gosto de tudo, com destaque para vinho que agora se tornaram praticamente iguais. Satirizo que foi uma forma de punição divina, visto que atiça o ateísmo do meu pai, fora o fato de punir o próprio ato de degustar.

OBSERVAÇÕES GERAIS. Mesmo no momento do incidente ter ocorrido um bloqueio das emoções diante de, por assim dizer, uma necessidade de sobrevivência, sua força se mostrou presente posteriormente. Ter de explicar o incidente revivia uma descarga emocional em grau intensificado, em relapso sentia reviver o incidente instantaneamente. Descrever o fato tanto oralmente como em forma de texto despertava uma emoção fortíssima, ao mesmo que também a retirava do meu peito. A experiência estética que havia presenciado alterou por completo meu organismo nas semanas seguintes.

Como mencionado em Que Emoção! Que Emoção? a força da emoção se mostrou presente no meu mundo inconsciente, o mundo imagético foi diretamente afetado. Sonhar. Uma tarefa que se árdua. Lembro vividamente de estar sonhando e de um momento para outro me ver em parte vivendo o mesmo incidente novamente, ou quando sonhava com meu pai, onde tudo estava normal até que sua expressão se transformava, voltava ao seu estado de quando estava internado, a mesma confusão que apresentava voltava a ser presenciada. Adquiri em parte insônia, não por escolha obviamente, mas pelo fato do meu corpo ter associado ao sonho como algo ruim/prejudicial ao meu corpo; pelo simples diagnóstico de acordar suando ou com os impulsos nervosos.

Com o tempo a intensidade dos estímulos e fenômenos baixaram, querendo ou não, o tempo passa/cura o ser. Voltamos ao mundo comum. Refleti muito diante do que vivi, de certa forma ampliou a forma como penso e estabeleceu certas concepções sobre o impulso de estímulos sofridos. Contar o ocorrido, apesar de doloroso era uma forma de aliviar com o tempo tudo, talvez pela forma de naturalizar e compreender ao máximo o que foi tal experiência estética. Apesar de tudo, hoje já escrevo sobre o ocorrido de forma natural, apesar de lembrar de bastante coisa, o detalhamento já não é mais o mesmo (e nem deveria ser). Incrível acreditar que já se foram dois anos.

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