Cicatrizes Invisíveis

Isabel Forbes de Queiroz Ferreira
Iandé
Published in
6 min readApr 23, 2020

Cicatrizes são, de uma maneira bem simples de dizer, aquelas marcas que ficam na sua pele após uma ferida cauterizar. Elas podem se formar em qualquer lugar: rosto, braços, pernas, pés, mãos; e pelos mais diversos motivos. Algumas são tão pequenas que são quase imperceptíveis, mas há outras que são grandes e distrativas. Porém não importa o tamanho: elas podem ser facilmente escondidas com uma franja, uma gola de camiseta, um casaco ou jaqueta, calças…

Mas e aquelas cicatrizes que não se pode enxergar? Isto é, aquelas que não são causadas por lesões físicas? Estas podem ser desconhecidas pela maioria das pessoas já que, não sendo possível vê-las, é difícil reconhecer uma. Todavia, isso não quer dizer que elas são menos importantes do que as cicatrizes visíveis: afinal, o plano físico é a única diferença entre ambas. Tanto as materiais quanto as escondidas carregam histórias por trás de si. Histórias que comumente não são como contos de fada onde tudo acaba “feliz para sempre”, difíceis de compartilhar. Talvez também seja por isso que as segundas recebem o status de “invisível”.

Eu queria mudar de escola. Por mais que gostasse dos professores e de meus colegas de sala, achava as aulas e conteúdos muito fáceis; o meu cérebro de criança de 8 anos ansiava por mais desafios para se desenvolver. Ansiosa, queria fazer a transferência ainda no meio do ano, para não perder nenhuma oportunidade. Meus pais, insatisfeitos com mudanças na administração escolar, acolheram a ideia sem pestanejar.

Como eu queria voltar no tempo e dizer para essa criança que ela estava prestes a cometer um grave erro… Ah, somente se máquinas do tempo não fossem exclusivamente coisa da ficção.

A professora que tive por 2 anos seguidos não era necessariamente ruim em dar aula e ensinar a matéria. Mas parecia que ela não tinha muita paciência em apontar e explicar dúvidas.

Por ter caído de para quedas em alguns assuntos que ainda não havia visto em minha escola anterior, é claro que após cada explicação eu me dirigia à mesa dela para tirar minhas dúvidas sobre as diferenças entre palavras paroxítonas e proparoxítonas, ou como se faz a tabuada do 9, somente para ouvir em troca reclamações impacientes, um pedido de reler o enunciado até entendê-lo, e um “beijo, me liga” como despedida.

Após diversas tentativas, passei a não tirar mais dúvidas para evitar correr o risco de ser constrangida, um comportamento que repito até os dias atuais pelo medo de que a minha pergunta seja boba demais e tirem sarro de mim, ou que o professor me ignore ou me humilhe na frente de todos.

Por ser uma escola nova, há sempre a ansiedade de conhecer novas pessoas, ainda mais quando se ingressa no meio do ano, onde eventuais grupos de amigos já estão formados e estabelecidos. Talvez seja por isso que eu também tive um pouco de receio de me introduzir nesse contexto, como se fosse perturbar a ordem de um universo pré-existente.

Eventualmente, consegui fazer algumas amizades. Poucas, porém o suficiente para me fazer sentir um tanto inclusa; mas houve também um caso de convivência negativa, na forma de um menino que roubava e fazia graça dos meus óculos, além de constantemente me empurrar tão forte que muitas vezes eu quase realmente caía de cara no chão.

Fiquei praticamente um ano aguentando essas provocações, não contando nada para meus pais sobre o que acontecia por que não queria preocupá-los. Eu até hoje não sei dizer o motivo pelo o qual ele fazia esse tipo de coisa comigo; tudo o que eu sei era que, pelo ou menos, eu não era a única a me sentir atacada por esse menino, pois, um dia, todas as meninas da sala foram reclamar do comportamento dele para a diretoria, depois de alguns dias, ele foi expulso da escola.

Às vezes me pergunto o que teria acontecido se não tivesse ocorrido este movimento coletivo. Poderia eu ter ido sozinha falar com a diretoria? Sim, mas como consequência do que narrei anteriormente, tinha medo de que a diretora não acreditasse em mim ou que, pior, ele descobrisse da minha tentativa de dedurá-lo e me provocasse ainda mais.

A marca que as provocações que este menino me causava levou à criação de um casulo em volta de mim mesma, da qual serve para tentar me proteger de outras ameaças, da qual igualmente deriva uma dificuldade de me aproximar de outras pessoas, por medo que elas repitam o que ele provocou em mim.

No entanto, ainda não cheguei ao último e pior ano que tive nesta escola: o quinto ano do Ensino Fundamental; de longe o pior ano que passei nesta escola, e também o último.

Primeiramente, houve uma mudança do horário da tarde, da qual eu estudava anteriormente, para o da manhã devido à escassez de alunos, o que culminou em uma outra mudança de salas e me fez perder os contatos com as poucas amizades que tinha.

Ainda um pouco abalada pela minha vivência com o garoto que mangava de mim, foi difícil tentar abrir aquele mesmo casulo. Todavia, ainda assim, a convivência com meus colegas de sala naquele ano foi praticamente impossível por dois motivos: o primeiro era que os meninos só se interessavam por futebol, e o segundo que as meninas só pensavam em namorar os meninos, falando deles 24 horas por dia.

Os problemas eram que eu detesto futebol e sou horrível em esportes, e que na época (e ainda hoje em dia) não tinha interesse e não me sentia confortável em ficar fofocando sobre meninos e falar sobre coisas como namoro. Ou seja: eu não me encaixava em nenhum dos dois grupos de convívio, algo que me fez passar o resto do meu ano escolar como uma exilada.

Por mais que sofresse com os dois fatores citados anteriormente, eu ainda conseguia levar uma vida escolar relativamente normal por ter algumas amizades. Mas agora que elas haviam se desfeito com a mudança de horários eu estava completamente sozinha. Não tinha ninguém pra conversar durante as aulas e passava todos os recreios na biblioteca lendo livros.

Ir para a escola naquele ano tornou-se um fardo. Ainda lembro-me do gosto insípido do pão francês com queijo todo o café da manhã, qual engolia com relutância sabendo que, ao acabá-lo, me dirigiria a mais um dia de vários por vir que ficaria solitária.

Gradativamente, comecei a me opor à ideia de ir para a escola, pois já não aguentava mais ficar todas as manhãs por conta própria. Dizia para a minha mãe que não me sentia bem, ou mesmo lhe contava superficialmente a verdade, sem dar muitos detalhes. Eu não queria preocupá-la, e ela, na maioria das vezes, acatava aos meus pedidos. Isso até o dia em que ela descobriu a verdade, obviamente não de minha boca.

Um pouco mais para o fim do ano, a diretora chamou minha mãe para conversar sobre o fato de eu passar todos os recreios sozinha na biblioteca, e perguntar se havia algum porque de eu não passar tempo com as meninas que perseguiam os meninos. Ao ouvir esta última parte, minha mãe ficou chocada com a situação e passou a me apoiar durante o resto do ano letivo, compreendendo minha falta de interesse em ir para a escola.

Só não consegui mudar de escola naquele momento uma vez que perderia muita coisa. Mas ela, para a minha felicidade, me garantiu que eu não continuaria mais naquela mesma escola a partir do ano que vem.

Mesmo que tenham se passado quase 10 anos após esse ano desastroso, eu ainda relembro com vivacidade os momentos que passei sozinha, algo que me deu a sensação de estar sendo constantemente julgada por não se encaixar com os demais, o que por sua vez culminou em um medo paralisante de rejeição que contribuiu para fortificar o casulo que já havia construído.

Por mais que eu tenha conseguido me livrar daquela escola, ter tido ótimos anos em uma nova que permaneci até a formatura e ter feito novos amigos quais mantenho contato até hoje, ainda carrego comigo o que me aconteceu como cicatrizes invisíveis. Ainda tenho medo de manifestar minhas dúvidas pelo receio de ser ridicularizada; encontro muita dificuldade de sair do meu casulo, com algumas raras exceções que sempre não são por iniciativa própria; além de um medo e ansiedade constantes de se aproximar de novas pessoas por receio de ser rejeitada e julgada.

Nunca contei sobre essas coisas para ninguém, não só para não fazer as pessoas se preocuparem comigo, mas também por muito tempo pensar que estava exagerando, que esses problemas eram típicos de uma timidez. Além do mais, a experiência de guardar esses fatos por 10 anos me fez acostumar com não compartilhar os meus problemas para os outros para não fardá-los com minhas preocupações.

Mas agora eu vejo que isso mais me prejudicou do que me ajudou. Por mais que ainda tenha temor em falar dessas coisas, tenho que começar a enfrentar isto. Esse mesmo texto, por mais difícil que tenha sido de redigi-lo, foi a primeira experiência que tive em expressar tais acontecimentos, de comunicar meus sentimentos; de finalmente expor as minhas cicatrizes invisíveis, das quais ocultei por anos por medo e vergonha. Agora eu finalmente percebo que está na hora de assumi-las e, quem sabe um dia, começar a exibi-las para o mundo sem mais receios.

--

--

Isabel Forbes de Queiroz Ferreira
Iandé
Writer for

Aluna de Cinema de Animação na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) — São Paulo