Cowboy Bebop: A Dádiva do Presente

Vicente da Paz
Iandé
Published in
7 min readApr 22, 2019

É sempre com muito carinho e cuidado que relembramos as histórias que gostávamos quando crianças. É um exercício engraçado perguntar para pessoas de idades completamente diferentes qual seu filme da disney ou série de animação preferida, pois a resposta quase sempre se reduz a qual filme ou série estava no ar ou em maior popularidade nos anos formativos dessa pessoa. Isso não quer dizer necessariamente que quando adolescentes somos fascinados e facilmente cativados pela superficialidade, nem que grudamos em quaisquer obra bonita que esteja passando na TV. Penso que isso somente significa que é neste momento na vida que nós realmente passamos a questionar quem somos, e a pensar em nosso lugar no mundo. E é nessa hora que as histórias fantásticas de protagonistas que passam justamente por essa mesma experiencia têm seu maior impacto, e ao crescermos, colocamos um pouco de nós na mídia que consumimos, e guardamos um pouco dela dentro de si.

Foi justamente nesse período que me deparei pela primeira vez com Cowboy Bebop, uma série de animação japonesa (anime) dirigida por Shinchiro Watanabe. A série conta a história de 4 caçadores de recompensa, Jet, Spike, Faye e Ed, que vivem em um futuro distópico em que a terra foi destruída por um evento catastrófico e a humanidade se espalhou pelo cosmos, indo para Marte, Jupiter, Ganymede, entre outros. A série tem uma trilha sonora composta quase que exclusivamente de blues, jazz e folk, que acentuam os tons da filmografia “western” e “noir” que inspiraram a série.

Os 4 tripulantes da nave “Bebop” (da esquerda para a direita: Jet, Spike, Faye, Ed e Ein)

A narrativa é primariamente episódica, de forma que a maioria dos episódios podem ser assistidos sem a necessidade de ter visto aqueles que os antecedem. Assim, cada episódio introduz uma série de personagens únicos que interagem com nossos protagonistas. Através de cada uma dessas histórias paralelas, somos lentamente introduzidos ao passado de nossos personagens: Spike, apesar de sua natureza calma e brincalhona é um ex-gangster assombrado pela perda de Julia, que abandonou Spike quando decidiram fugir juntos para escapar de sua vida de crime. Jet é um ex-policial forçado a virar caçador de recompensas ao ser traído pelo seu parceiro quando ameaçou expôr um esquema de corrupção dentro da força de polícia. E Faye, que aparenta na superfície ser viciada em bebida e jogos de sorte, se encontra à procura de seu lugar no universo ao acordar 60 anos no futuro depois de ser mantida em um estado de animação suspensa após um acidente que quase a matou, e é então forçada a lidar com o fato de que todos aqueles que ela amava, e todos os lugares em que passava seus dias se foram a muito tempo atrás. A série trata de temas como depressão, solidão, niilismo e estoicismo ao contar uma história que é a “história depois da história”.

A narrativa dos protagonistas de Cowboy Bebop já acabou na hora em que a série começa, e nós vemos somente o rescaldo de eventos que já transpareceram, de modo que os personagens são assombrados pelo seu passado, incapazes de se libertarem. No clímax da série, Spike decide enfrentar seu arqui-inimigo, Vicious, o último membro restante de seu antigo sindicato criminoso. Pouco antes disso, Faye finalmente aceita que seu passado se foi, e o único lugar em que ela pode ficar é na nave em que os quatro moram, a Bebop. Quando Spike está prestes a sair, Faye o confronta, e tenta fazê-lo perceber que o passado é o passado e é imutável, e que o presente é a unica coisa que importa, e por isso ele deve ficar e aproveitar o que eles têm agora ao invés de jogar fora sua vida por causa de algo que já se foi. Spike responde que no dia em que perdeu sua amada, houve um tiroteio e um de seus olhos teve que ser trocado por um olho falso, que existe como um lembrete constante do que aconteceu. Desde então, está sempre olhando para o presente com um olho, e para o passado com outro, incapaz de ir em frente. Por isso, não está indo lá para morrer, está indo para descobrir se ainda está vivo. Spike parte em direção ao conflito e, apesar de finalmente derrotar Vicious, se machuca gravemente e é deixado em aberto se ele vive ou morre no final. No entanto, a segunda opção é implicada fortemente com o letreiro no final que lê: “You’re gonna carry that weight” ao invés da típica e icônica frase que aparece no final de todos os outros episódios “See you space cowboy”.

E é claro que muito pouco disso entrou na minha cabeça de doze anos. Sabia que a série era especial, que tinha uma estética e fórmula narrativa única, mas não entendia direito o quão importante era o fato das narrativas dos personagens já estarem terminadas. Em um mundo de séries e filmes de animação (com ênfase nos animes populares da época) que sempre contam o começo da história dos protagonistas, que acabam se reduzindo a um arco narrativo com começo, meio e fim e que começam e morrem no que vemos na tela, Cowboy Bebop tenta contar o que acontece depois, e mostrar como cada personagem, de sua própria forma, lida com a solidão e a indiferença do mundo quanto a sua história.

Alguns anos depois a tal época mágica se passou. Me formei do ensino médio, meus pais se divorciaram de forma pouco pacífica. Minha mãe, que deveria morar comigo, voltou para sua cidade natal e não aceitava deixar meu pai voltar para casa e me deixou morando sozinho. Não pude estudar fora do Brasil como queria e planejava por várias complicações econômicas envolvendo minha família. Entrei em uma depressão profunda e precisei de assistência psicológica. E, por conta de várias pressões vindo de meu pai, fui contra a minha vontade estudar direito. Meu pensamento nessa época era que eu precisava ganhar dinheiro para poder sustentar minhas irmãs e eventualmente meu pai. Tinha aceitado que a vida não seria o que eu queria que ela fosse e que a realidade era assim mesmo. Nunca gostei de direito, mas dava dinheiro, e era disso que precisava, então joguei meus sonhos e aspirações no lixo para fazer o que eu acreditava ser necessário. Entrei no curso de direito da PUC e, para a surpresa de nenhum dos envolvidos, odiei. Em minha memória, estes meses que passei cursando direito são quase como um sonho. Minha cabeça não estava 100% presente no momento em quase nenhuma hora. E apesar de tirar notas decentes, não lembro de quase nada do que me foi dado nesta época.

Faye assistindo fitas antigas de seu passado

Foi então que, em meio a uma pequena crise nostálgica em relação a um passado que já parecia distante, decidi rever algumas das séries que gostava quando era mais novo, e entre elas, estava Cowboy Bebop. E desta vez finalmente vi tudo aquilo que não tinha percebido na primeira vez em que eu vi. Parecia uma série completamente diferente, e eu mal reconhecia alguns dos personagens. Mas foi a relação em comum que todos tinham com o passado que me pegou. Estava me vendo nos personagens; não necessariamente como eu era, mas como eu poderia ser. Foi então que percebi qual a verdadeira mensagem de Cowboy Bebop: É um fato que não podemos mudar o passado. Porém se focarmos somente nas consequências que o passado tem no presente, nós esquecemos das consequências que as nossas ações no presente podem ter no futuro.

Depois disso, decidi viver minha vida para o presente. Eventualmente saí da PUC e decidir cursar animação, algo que nunca tinha nem cogitado logicamente fazer da vida pelo simples motivo de não ser uma area que é exatamente lucrativa, e segui neste caminho puramente por ele me trazer felicidade. Além disso, quero algum dia produzir algo que tenha o mesmo impacto nas pessoas que Cowboy Bebop teve em mim, e quem sabe até ajudar alguém a se encontrar na vida como ajudou a mim. Desde então, olho para o passado sem arrependimentos, para o presente com satisfação, e para o futuro com esperança.

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