De volta à caverna de dragão

Alexia Haick
Iandé
Published in
7 min readApr 24, 2019

@Alexia Haick Martins da Silveira

Foto Still da cena inicial

Eu passei minha vida inteira no Teatro Dias Gomes, também conhecida como caverna do dragão ou a caverna do Batman. Desde dos meus nove anos, esse teatro com cadeiras quebradas, problemas no teto e paredes sujas se tornou meu santuário. A rua Domingos de Moraes virou um solo sagrado, foi nesse lugar que eu me encontrei. Apesar de conhecer esse teatro ja há mais de 9 anos, eu nunca tinha chegado a subir naquele palco, passei muito tempo na plateia sempre sonhando em um dia estar em cima. Infelizmente quando tomei coragem de entrar na oficina de teatro que trabalhava no Teatro Dias, eles precisaram mudar de locação porque as condições do espaço estavam muito precárias.

Foi muito difícil se despedir daquele teatro, porque faz parte de mim. Ele me moldou e tornou a pessoa que eu sou hoje. Ele não só me marcou, mas também todo mundo que passava naquele espaço. Aquele lugar quase todo destruído tinha uma magia difícil de explicar.

Foto Still. No lado esquerdo, o Teatro Dias Gomes (2013) e no lado direito, o Teatro Novo (2018)

As paredes, as poltronas de coro antigo vermelho, os camarins cheio de mensagens de todos os artistas que passaram por lá, as goteiras, as cordas amarradas na parede, a cruz e honestamente tudo me fazia sentir em casa. Eu cresci lá, passei anos da minha vida indo todos os finais de semana com ansiedade na minha barriga para ver as novas peças em cartaz.

Capa do album do "Noturno"

Uma dessas peças era o Noturno. O musical mais reconhecido e antigo da oficina dos menestréis, foi escrita pelo Oswaldo Montenegro e dirigida pelo seu irmão Deto Montenegro junto com o Cande Brandão e o Tchello Palma. Estreou na cidade de São Paulo em 1991 falando sobre a noite Paulistana em seus mais diversos aspectos como a loucura, o amor e o medo. Até as pessoas que não gostam de musicais se encantam pelo Noturno

No ano passado comemorava 27 anos da peça em cartaz, eu fiz audição em 2017 e três semanas depois recebei um email dizendo que fui aceita no elenco. Os ensaios começaram em janeiro de 2018 e terminaram no final de agosto. A peça ficou em cartaz a partir da última semana de Agosto até a última semana de novembro. Foi um grande desafio. Ano passado foi marcado por vários momentos de cansaço, diarreia, choro e de dúvida. Mas a valeu a pena todas essas incertezas, porque todas as apresentações tinham uma energia do público e do palco que eu nunca tinha sentido antes na minha vida.

Hoje completa 28 anos de história. Em todos esses anos, aconteceram muitas coisas, muitas pessoas participaram desse projeto e tem muito admiradores que seguem todo ano as novas edições. Durante as apresentações você conseguia ver as pessoas fazendo as coreografias na plateia, cantando as canções originais do musical, falando os textos e emocionando junto com o elenco. O carinho pela obra não era só vista pelo olhar do elenco, mas também pelo olhar do público em toda sessão.

Uma semana antes de acabar a temporada no Teatro União Cultural, o diretor recebeu uma ligação sendo convidado para apresentar no velho teatro Dias Gomes, hoje chamado de Teatro Novo, no dia 27 de novembro. O Deto fez um acordo com o teatro e topou na hora. Porque nesses 28 anos de história do noturno, 23 anos foram apresentado no Dias Gomes. Aquele lugar era a casa de muita pessoas, não tinha como negar uma chance de voltar para nosso lar.

No dia 27 de novembro, meu coração não estava sabendo lidar com a apresentação. Era uma mistura de sensações. Em um dia, estava me sentindo explodindo de alegria de voltar para o Dias e ao mesmo tempo triste por causa do fim da temporada. Eu nunca tinha sentido tanto orgulho como aquele dia. Não apenas por não ter desistido de fazer parte do projeto, mas também de ter feito parte dessa história que é muito mais antiga do que eu.

Foto Still da última apresentação do noturno no dia 27/11 no Teatro Novo

Ao sair da faculdade, com a mala de figurino e o roteiro na mão vou em direção a rua Domingos de Moraes; passo pelo Supermercado Dias; entro naquele mini shopping; atravesso uma antiga loja onde comprava doces;passo pela escada caracol; subo nas escadas que marcaram minha infância. Em alguns segundos, já sinto a lágrima chegar e penso em tudo o que eu passei naquele local

Eu entro no teatro e está tudo diferente tem até paredes limpas e poltronas novas, porém apesar de todas essas mudanças a energia do lugar continuava a mesma. Eu cheguei naquela porta de entrada e só fiquei imóvel observando. Tudo aquilo parecia tão irreal, me senti novamente como uma criança. Logo na primeira cena do ensaio, que era feita na plateia, eu olho para aquele lugar e não conseguia me conter. Eu me via criança em todo canto daquela plateia. As minhas parceiras de palco, também não se aguentaram e se comoveram por estar de volta. A peça nem começou e eu, o elenco e a produção já estavam inchados de choro.

Depois de um tempo, a administração da oficina abriu a porta para o público. Quase 500 lugares vendidos , todos da plateia realmente tinham uma história com aquele lugar. Mais tarde, todo mundo da equipe, mais de 60 pessoas, segurou a mão do outro e fizemos nossa reza para nosso anjo da guarda . Todos os outros dias de apresentação fazíamos a nossa roda, mas nesse dia foi diferente porque depois de 2 anos finalmente voltamos para nossa casa.Parece besteira, mas o Dias Gomes mudou muito as vidas das pessoas que passaram naquele palco.

No final, o diretor vai em direção a plateia e começa o discurso para agradecer a presença e o apoio ao longo do ano. Durante o discurso, todo o elenco que estava junto desde do começo do ano começa a se abraçar e beijar como uma forma de se despedir do projeto. Ao escutar “Eu tenho medo de ver as criaturas da noite. Estátuas sem rosto me olham assim…” eu sei que a peça começou. Minha perna começou a tremer como o primeiro dia que me ensinaram a cena inicial. Eu percebo que naquele dia era meu último dia na oficina.

A peça passa super rápido e sem dúvida nenhuma era a plateia mais quente da temporada. A plateia gritava, cantava alto todas letras e fazia todas as corografias junto com o elenco. Na música “Espelhos das águas”, eu abraçada com meus amigos do elenco tento segurar as lágrimas , mas não eram lágrimas de tristeza mas de imensa gratidão. Eu nunca pensei que ia me apresentar naquele palco e ainda mais ver todos aqueles rostos conhecidos na plateia e outros elencos do noturno presente. Parecia um sonho. Com o fim da “foto” da cena final, o diretor chama o elenco para entrar no palco e se despedir do noturno 27 e eu só conseguia chorar.

“Voltamos para casa” disse o diretor. Ele pediu para que todas as pessoas que já participaram do noturno nesses 27 anos de história subir no palco. Ficou muito cheio o palco de outros edições, não esperava que estavam tantas pessoas presentes. Todo mundo não só do palco, mas da plateia também se emocionaram naquele momento.

Foi uma das melhores noites da minha vida , nunca tinha sentido tamanha energia num lugar só. Mesmo com uma dor sabendo que naquele dia eu despedi do teatro, meu refúgio ao longo dos anos, o meu coração estava repleto de alegria por causa desses 3 anos no palco. Eu sempre vou lembrar daquela noite mágica.

“Nos acolha. A noite não tema por nós.

Quando amanhecer, arranje um cantinho no mundo,

onde haja água e música, e lá adormeceremos.

Quando anoitecer,

e o mundo estiver conformado com o que o dia não deu,

nós estaremos em festa. E vocês estarão convidados.

SEMPRE!!!

NOTURNO, ASSIM SEJA.”

Foto Still de momentos da peça: "Deusa da loucura" ( primeira foto), "But I stil"( segunda foto à esquerda) e "O farol" ( terceira foto à direita).
Deto Montenegro e Candé Brandão contando sobre a história do Noturno.

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