Escrevo para minha morte

Por Erica Duarte

Erica Duarte
Iandé
4 min readMay 29, 2020

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E ela ficou viúva cedo. Vinte e nove, meu pai três. De primeiro, quando era moça e solteira, não se casou com o outro porque seu pai não deixou. E não deixou porque o avô d’outro tinha tido doença de sangue, bobeira da época… mas também, de nada ia adiantar, ele igualmente teria morrido anos depois — e não de morte morrida, mas de morte matada. Seria viúva de qualquer jeito. Ela riu me falando. O ano era 2020. É? Era. Vinte vinte. Tic tac tic tac. Mas foi antes de…? Foi! Foi antes. A gente tomava café e ela me contava. A gente nem imaginava. Pois devia, não devia? Devia imaginar. Devir. Imaginar o devir. Devíamos, com certeza. Mas não o fizemos. As vezagente esquece dele. Agora, devemos. Tudo começou e, mesmo que não quisesse, me lembrei. Lembrei-me com um soco no estômago, naquele dia. Embrulho, como minha mãe dizia. Não embrulho de presente… Cinco dias antes desse a gente prometeu pra Mari um presente de aniversário. Presente que nunca chegou… e virou passado. Vomitei. Estômago embrulhado com papel de passado. Din dón. Dei descarga. Din dón. Era meu pai. Ele perguntou se eu queria ir dirigindo. Pensei em dizer que sim. Ânsia. Disse que não. Deu-se início ao processo de compressão. Compressão essa gelada, esquisita. Ouvia apenas o vento entrando pela fresta da janela do carro. O barulho da inércia. É isso que éramos, naquele momento. Somos. Eu e meu pai. Meu pai e eu. Corpos inertes. E aquelas estradas estranhas estranhamente não remeteram a um mar-conforto. Contrário! Des-conforto traduzido em palpitação. Paramos em um posto de gasolina. Mais uma vez vomitei. Mascarada, sentia-me como uma fugitiva. À medida que nos afastávamos da metrópole o grau de fugacidade aumentava em minha fantasia. Meu pai foi calado, distante. Perto e distante. Imediatamente relembrei a conversa que havia tido com minha irmã na manhã anterior, em meio a um vômito e outro. “A mãe te contou?” — e é claro que ela não contou. “Não contou, você vai me contar?”. Contou ela que ele não passou bem. “Mas passou?”. Ela não soube me dizer se passou. Inundada num mar sem-conforto fui levada vagarosamente pela correnteza até o fim da compressão. Recém chegada em meu quarto natal, noiteceu. A cidade quietou. Cidade pequena cessa como não vai nunca entender gente da cidade grande. O silêncio da noite proclama a morte do dia. E eu gosto, sabe? Uma noitinha serena que aconchega. Nada se ouve? É claro que ouve! Houve pensamentos a beça. E eu gosto, sabe? É um quase forçado ócio. Uma terapia que não deixa nada recalcar, faz lembrar, relembrar. Noite que cura e força a memória. Mas naquela noite, em específico, eu não gostei. Fez falta o zumzumzum que não deixa meus pensamentos desacompanhados. Não dormi. Desacompanhados acompanharam o som — ou a falta dele — do falecimento daquele dia. Meangustiou. Manheceu. Me olhei no espelho e com ele me choquei. O impacto foi grande e dissociei em centenas, milhares, milhões de pedacinhos. Olhei para meu cabelo há pouco cortado. Cortado antes de tudo, claro. Clareou na mesma hora uma memória um tanto antinguinha. Me ocorreu o momento em que uma amiga de infância me fizera uma pergunta.“Já pensou que um dia, lá atrás, a gente brincou juntas pela última vez? Sem nem saber que era” — a última. Não, não pensei. E meu cabelo era comprido, mas noutro dia não era mais. Pensei em meu pai e em como ele sempre esteve ali, mas pode bemderepente não estar. Recordei da ingenuidade perdida que se tornou impossuível antes mesmo de saber que possuía. Lembrei da cerveja que a gente deixou pela metade porque voltava mais tarde, mas não voltou. E o presente da Mari… Tudo que era e não é mais. Poderia ser, mas não foi. E pode. Pôde. Não é falta de potencial. Vi criaturas fantasmagóricas daquilo que nem sequer foi. Possíveis epitáfios. Refiz todos os caminhos passados e os futuros. De quando virarei à direita naquela calçada mas eu pude ter virado à esquerda. Cada um caminho que tem a virtualidade de ser milhares de outros, mas que por ser um e, mais precisamente, no momento que se torna um, anuncia silenciosamente a morte de todos os que não foram. Mas há de se lembrar que anuncia também — este, em alto e bom som — aquele um que é. Anúncios que vivem num mutualismo obrigatório. É o tal do devir que a gente insiste em esquecer vezououtra. A não-evitabilidade da morte que vive escancarada ali, aqui, acolá. Morte essa que talvez seja o segredo desta vida. Os pedacinhos convergiram. Me recompus. Respirei: talvez a palavra que dá o nome à coisa pese demais. Achei que pesa, mas não precisa. Não é sobre morte morrida ou morte matada. É morte-fim. Morte-tempo. Morte que, se morre, mata consigo a vida. Morte que assusta de início. Meassustei, confesso. Confesso: nesse dia chorei. Que choro bobo. Choro doído. Bobíssimo. Um choro atoa de olhar pro óbvio. Olhei, com os olhos marejados, pr’essa morte que não se vive sem. E chorei. Pode chorar. Chora. Não tem problema. Choro também cessa… e morre.

“Morte-tempo”- parte de “Escrevo para minha morte”. Por Erica Duarte. 2020.

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