Herói de todos

Sem mais esperanças, os fazendeiros decidiram por fim derrubar todas as macieiras que restaram

Giovanna Victoria Rueda de Barros
Iandé
7 min readDec 6, 2022

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Por Giovanna Victoria

Em uma pequena vila, fazendeiros cansados lutavam para cultivar suas poucas plantações. As estações eram sempre rigorosas. O inverno congelante e o verão escaldante, a comida escassa e as poucas macieiras, únicas arvores que os davam sustento o suficiente para alimentar suas famílias, sucumbiam ano após ano.

Sem mais esperanças, os fazendeiros decidiram por fim derrubar todas as macieiras que restaram, para então cultivar uma espécie de árvore diferente. Eles rezavam para que as novas sementes pudessem os salvar de toda aquela miséria.

As árvores foram caindo, uma por uma. Os seus gigantes troncos caiam e sacudiam a terra, mas deles nenhuma maçã caia. Só folhas e mais folhas, que cobriam o chão e deixavam os fazendeiros cada vez mais de luto.

Entretanto, ao se encaminharem para cortar a última a árvore ela os suplicou: “Fazendeiros que me criaram, não acabem com a minha vida, trago a vocês a esperança. Do meu mais forte galho brotarão dezenas de maçãs. E elas caíram em seus cestos por dezenas de anos”

Os fazendeiros decidiram confiar na Macieira restante, já que no lugar das outras caídas plantariam novas arvores, logo não viram problema em deixar uma viva, mas eles a alertaram: “Confiaremos em você, porém se em dez dias seu galho não nos prover nenhum fruto, seu destino será tombar pelo próprio fracasso”

Dez dias se passaram e os fazendeiros visitaram a grandiosa árvore cheia somente de folhas.

“Você nos enganou, Macieira. De teus galhos só vemos folhas, mas folhas não servem para alimentar nossas mulheres e nem nossos filhos. As nossas outras sementes já começaram a brotar, não precisamos mais de ti. Aceite cair e morra pela nossa sobrevivência”

A árvore, sem mais argumentos para convencer os fazendeiros, aceitou morrer. O machado foi levantado e a apunhalou uma, duas, três vezes. E então o fazendeiro que o meneava caiu no chão, queixando-se que alguma coisa havia o atingido na cabeça.

Todos olharam para o chão e viram uma maçã. A maçã mais vermelha e grande que já haviam visto em suas vidas.

“Você está brotando Macieira! Finalmente teremos comida!”, eles comemoraram em lágrimas. “Diga-nos, de onde provém essa saborosa maçã?”

A árvore então os respondeu: “Do meu galho mais forte, olhem para cima e o verão”

Os fazendeiros se esgueiraram para debaixo da árvore e olharam para cima, vendo então um robusto galho, sem folhas e repleto de frutos.

“Você está salva! Enquanto você brotar, nossos machados nunca lhe farão dano”

Com o recado dado, os fazendeiros voltaram alegres para dentro de suas casas, ansiosos para contar a notícia para suas esposas.

Sozinha, a Macieira falou: “Te agradeço Galho, por você fui salva, por seus esforços pude sobreviver. Enquanto você não perecer ou quebrar, lhe darei toda a minha seiva para que continue brotando e nos mantenha vivos”

“Não pouparei esforços, Macieira, enquanto você me tiver, prometo brotar, tanto que os fazendeiros não terão o que fazer com tantas maçãs”, respondeu o Galho.

Vários anos se passaram, e a pequena fazenda agora prosperava aos montes. Os fazendeiros pobres haviam se tornado grandes exportadores de frutas, suas casas eram adornadas por riquezas e a fome havia se tornado um sentimento distante, esquecido.

A fazenda se tornou famosa por suas saborosas maçãs, as maiores do mercado, as mais vermelhas e mais doces. Os visitantes que adentravam as terras cultivadas costumavam indagar aos fazendeiros: “De onde vem tais maçãs? Quantas árvores vocês têm para produzir tão imensa quantidade?”

E os visitantes sempre se espantavam com a resposta: “As maçãs vêm todas daquela árvore; todas daquele único galho”

A Macieira não havia quebrado a sua promessa com os fazendeiros, durante as décadas que se passaram ela nunca havia parado de brotar, e o Galho nunca havia falhado em sua missão de salvar a arvore e seus irmãos.

Os galhos que vivam ao redor costumavam invejá-lo por seu protagonismo, por sua força, por seu papel fundamental na sobrevivência de todos.

Já as maçãs o adoravam, não havia lugar mais seguro para brotar que não fosse no Galho, nele elas sabiam que nunca caíram sem antes estarem maduras, que nunca caíram pela força do vento, nele nenhum pássaro ou inseto ousariam pisar ou rastejar.

O Galho havia cultivado dentro de si uma imensa consciência sobre a sua responsabilidade; um imenso medo de falhar. Ele não confiava o suficiente nos outros para os permitirem tentar brotar, entretanto ao mesmo tempo, após tentos anos, sentia-se longo de mais, pesado demais, e se esforçava cada vez mais para conseguir suportar cultivar e sustentar todas aquelas maçãs.

“Galho, eu não sei, esses dias senti brotar em mim uma maçã, mas ela foi logo repassada a você…. queria saber se você não poderia me dar a oportunidade de tentar”

O Galho pensou prontamente em negar, descrente do potencial do companheiro e vizinho, mas quando um vento bateu e ele sentiu as maçãs se agitarem, o peso foi tanto que se sentiu rachar por dentro. Uma rachadura velha demais, e que aumentava cada dia mais.

“Claro…”

Assim foi quando uma maçã brotou em um galho cheio de folhas.

“Galho, finalmente tentou ouvir o meu conselho”, a Macieira o perguntou.

“Está pesado, tenho medo de quebrar e lhes deixar morrer…”

“Ah, meu salvador que veio de mim. Há quantos anos te falo para dividir a carga? Você foi quem nos tirou da morte e nos colocou no topo, mas já faz muito tempo desde que os fazendeiros saíram de miséria, já está na hora de você sair também”

“Como pode dizer que estou na miséria? Sou a base da vida de todos nós, se eu parar de prover as maçãs eles nos tombaram como prometeram quando a tristeza era a única coisa que reluzia em seus olhos”

“Então, porque está dividindo os seus fardos?”

O Galho não ousou responder, pois, sentia que sua resposta era tão egoísta que pensava que se a proferisse tudo em que acreditava; tudo o que havia feito, desmoronariam.

Com a divisão das tarefas, as maçãs não ficaram nada felizes. Elas se queixavam por verem suas companheiras caíram na terra antes do tempo, por serem comidas por insetos e roubadas por pássaros. E então elas passaram a pedir: “Galho, deixe-nos brotar em ti, só você pode ser a base que precisamos para não sucumbir”

E o Galho, empático de mais, consciente de mais, as deixou e deixou. Toda a sua extensão passou a ser tomada pelas maçãs, mas agora não havia seiva o suficiente para todos, pois, outros galhos também estavam brotando.

“Macieira”, ele rogou: “Provenha a mim um pouco mais de sua energia, tenho tantos a sustentar….”

Mas a árvore não quis o ajudar: “Galho, está na hora de você aprender…. O seu protagonismo o matará. Está na hora de você abrir os olhos”

Ela o abandonou e quando um forte vento bateu a primeira maçã caiu.

O Galho, a base mais forte de todas, o pilar que nunca havia deixado cair nenhuma maçã, assim o fez.

E a maçã gritou e gritou, amaldiçoando o Galho “Você prometeu que nunca nos deixaria cair antes do tempo, você prometeu que nos manteria seguras”

Em completo choque o Galho não conseguiu se defender e em sequência à maçã caída, todas as outras que ele ainda sustentava começaram a gritar.

“Você mentiu” “Ele está fraco, deixará todas caírem” “Mentiroso” “Fraco” “Quebrou sua promessa” “Eu confiei em você” “Mentiroso”

E as críticas se tornaram revoltas e as maçãs que ele se esforçará tanto para proteger, que por tanto tempo dedicou sua vida, suas forças, não permitindo que nenhuma folha nele crescesse para fortalecer as frutas, o desejaram sua morte.

“Vamos derrubá-lo!” “Ele está velho, está na hora de cair” “Se todas nós vamos cair, você virá junto” “Seu mentiroso” “Vai deixar todas nós apodrecerem” “Vai apodrecer junto”

E quando o vento bateu, elas se agitaram propositalmente, pesando-o, forçando-o para baixo. O Galho se sentiu rachar e rachar e implorou pelo perdão, mas nenhuma delas estava disposta a ouvi-lo.

Os outros galhos começaram a gritar, incentivando as maçãs a continuarem, imersos na própria inveja. Entretanto, um único galho, que estava ao seu lado, o galho que havia pedido a oportunidade de brotar o sussurrou: “Solte-as.”

“O que?”, o Galho perguntou perplexo.

“Solte-as, Galho! Não se deixe cair. Você lutou tantos anos para ser derrubado por seus próprios frutos? Lutou tanto para tombar apunhalado pelos que te diziam amar?”

O Galho parou, e por alguns instantes reviveu toda a sua trajetória, o momento em que se esforçou até quase romper para fazer nele brotar alguma coisa; o momento em que a Macieira confiou nele; o momento em que era feliz quando deixava as maçãs caírem nos grandes cestos dos fazendeiros; o momento que sentiu dor; o momento que invejou os outros galhos por serem adornados por lindas folhas, folhas que os pertenciam e que permaneceriam neles para sempre; e lembrou-se da resposta egoísta que não deu a árvore: porque estou cansado; cansado de suportar o peso e me sentir rachar. Porque quero viver por mim e não mais por vocês.

A coragem lhe invadiu, e quando mais um vento bateu e se sentiu partir, ele as soltou. Todas de uma vez.

E elas gritaram e gritaram, envoltas pela ingratidão. Os galhos que torciam pela sua queda ficaram calados, raivosos, porém, o galho aliviado pela vida do Galho e feliz pela sua libertação, o proferiu: “Descanse meu amigo e mentor, você já fez a sua parte, está na hora de deixar a gente tentar fazer a nossa”

O Galho, ignorando os gritos e súplicas de dor das maças que eram comidas pelos animais e insetos, deixou-se partir. A sua metade, a sua parte que cresceu mais do que deveria, caiu. Ele se permitiu rachar e recomeçar, se permitiu doer e ser sustentado pela Macieira.

Com o passar dos meses, a Macieira parou de enviar seiva excessiva para o Galho e ao invés de brotar maçãs ele se recheou das folhas que nunca pode ter.

Ele percebeu, após ser traído pelas maçãs e pelos que se esforçava diariamente para sustentar e salvar, que havia sido, por todos aqueles anos, herói de todos, mas nunca de si mesmo.

Photo by Priscilla Du Preez on Unsplash

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