Longo outono visceral

Por Renata Mayer Martins

Renata Mayer Martins
Iandé
3 min readMay 30, 2020

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Desde pequena eu sempre tive alguma coisa com o outono, não sei dizer o que. Acho que tirei a ideia de filmes ou o do clima dos países que já visitei com meus pais.

Folhas caindo e fazendo creck creck creck

Refletir em excesso nunca foi um problema para mim, antes de tudo acontecer já me perdia nesse espaço tão meu.

Acho engraçado que a gente fala as coisas com entonações, vírgulas e metáforas tudo para tentar soar poético, dar lirismo ao sofrimento.

dualidade

De um lado pessoas renascem, do outro milhares morrem.

É gente demais perdendo a vida, cessando de existir. Não acho que de para encontrar nada de poético nisso. Quando se tem certeza que vai morrer não é Caetano ou Godard que nos vem à mente.

Sinto falta de pessoas. Me entrego ao outono. Gosto muito desse sol.

aqui dentro

Já tive tantas epifanias nos últimos 60 dias que tenho medo de não me reconhecer mais fora daqui.

Dentro desses quadrados, a minha casa, o meu quarto, a cozinha, a sala de estar. Sou protegida, envolvida, estou segura.

Eu falei com a lua e ela quase me respondeu.

Bebi guaraná caçula, muito guaraná caçula.

Quebrei dois copos.

Maratonei os filmes da saga Crepúsculo que assistia muito durante minha infância. Pensei na relação entre os personagens principais, totalmente tóxica. Me lembro da relação que eu tinha com alguém que terminei durante esses dias loucos de isolamento.

Tenho sonhando com frequência maior e esses sonhos não são tão ruins, não tenho pesadelos faz um tempo.

Tem um louco gritando aqui fora, já é a segunda vez que escuto ele.

Não respondo muita gente, às vezes esqueço e às vezes não quero ninguém por perto.

(r)evolução

É interessante, essa mudança, gosto de imaginar como as coisas serão quando isso acabar. Vou entrar no shopping e tudo que vou pensar é “quais dessas pessoas, dessas centenas de pessoas não cumpriram acordo?”. Compartilho o mundo com elas, estão por todas as partes. Pessoas sem empatia, humanos sem humanidade.

Vejo as fotos da minha infância, compreendo diversas coisa sobre o meu passado, que sempre cogitei, mas nunca havia me realizado.

sentidos

Saí de casa duas vezes de carro e nas duas vezes fiquei enjoada, o corpo desconhecido me engolindo, o balanço, não estava mais acostumada.

Eu comecei a reparar mais no som do sino da igreja anunciando o fim da tarde.

Meus sentidos e minhas memórias se entrelaçam. Lembro bem vividamente de momentos do meu intercâmbio e de brincadeiras de infância.

Deito no jardim e observo a copa da árvore de cima. Olho como os galhos se entrelaçam e me pergunto qual deve ser a idade dessa árvore que me acompanha desde pequena.

Meus pés ficam frios demais na hora de dormir.

Olho as casas do outro lado da rua, percebo que enquanto eu crescia as pessoas que moram nelas também cresceram. Não sei quem não, mas sinto que compartilhamos algo especial.

O sol brilha diferente, é suco de laranja, vitamina C. Parece um coberto no fim de tarde.

O vento é quase sólido e estável como pedra.

O cheiro molhado da grama depois da chuva.

Tenho uma casa, conforto, internet, família, amigos para ligar, saneamento básico, pratos de comida todos os dias. Já me chamaram de ingrata, fui descobrir. Isto por reclamar tanto mesmo tendo tudo que tenho, mas logo percebi que não é bem assim. Sou grata por tudo, cada lágrima e gritos entre essas 4 paredes.

3CCM20201

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