2012

Luca de Oliveira B.
Iandé
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12 min readDec 2, 2019
Retrato meu no topo de um prédio no centro, tirado por meu amigo Gianfranco Vaccani com uma câmera analógica

A minha vida é dividida em duas partes. Antes e depois de 2012. Até tal ano, eu tinha uma visão defasada da realidade. Se os eventos que aconteceram em meu mundo nesse ano não tivessem acontecido, eu seria, com toda a certeza, uma pessoa extremamente diferente de quem sou hoje.

Até aquele ano, eu não pensava sobre a fugacidade da vida. Não refletia sobre o tempo. Para mim tudo era duradouro. Neste ano ocorreram três eventos marcantes em minha vida, um na sequência do outro, que me transformaram para sempre.

Caixa d’água na USP

Todo mundo passa por desilusões amorosas na vida, e o primeiro é sempre marcante. No começo do ano minha primeira namorada terminou comigo. Somos sempre os últimos a saber das coisas, e descobrir que eu fui traído logo no primeiro relacionamento foi difícil, ainda mais pelo fato de que eu namorava minha melhor amiga, alguém que eu confiava cegamente.

Foi um período complicado para mim, ainda mais em que nessa época eu era extremamente inseguro.

Eu e a Mari, minha primeira namorada

O relacionamento dos meus pais sempre serviu de exemplo pra mim. Se conheceram cedo, no primeiro estágio em que faziam enquanto estudavam jornalismo, casados a quase 17 anos nunca brigaram, não havia discussões e sempre houve muito carinho, tanto entre eles quanto com seus filhos, eu e meu irmão. Sempre houve muito amor em nossa família.

Pelo fato de nunca terem brigado, quando eles anunciaram para mim e meu irmão que iriam se divorciar, foi um choque. Algo que eu jamais imaginaria. Eles nunca brigavam, pareciam ser feitos um para o outro. Gostos semelhantes, sempre demonstraram afeto e nunca exteriorizaram problemas em seus relacionamentos. O divórcio junto ao meu término no começo daquele ano,me fizeram questionar muito o amor. Se meus pais, exemplos do amor “perfeito”, do relacionamento dos sonhos, não dera certo, qual daria?

Só que o pior ainda estava por vir.

Prédio ocupado no centro de São Paulo

No final de Novembro, menos de um mês de seu aniversário de 76 anos, ou como ele gostava de brincar, de sessenta e dezessete anos, meu avô faleceu. Uma doença auto imune tomou conta de seu corpo, semanas após a internação ele sofreu um AVC, nada relacionado à sua doença. Ficou uma semana em coma até seu corpo não resistir mais. Gosto de pensar que a melhor coisa foi ele não ter voltado do coma, ele provavelmente teria fortes sequelas, jamais seria o mesmo e ele já estava muito fraco. Seria pior tanto pra família inteira, mas principalmente para ele. No hospital ele já estava muito triste, era nítido. Uma pessoa que sempre trabalhou sua vida inteira, desde criança cortando cana e banana em sua cidade no interior de São Paulo, até no hospital participando de programas da Rádio Bandeirantes enquanto lutava contra sua doença.

Eu com meu avô nos rotineiros almoços de sábado

Meu avô era meu melhor amigo. Todos os finais de semana eu passava em sua casa, com ele, minha avó e meus primos que moravam na casa em frente a sua. Às sextas feiras a gente ia com minha avó, meus primos e meu irmão comer McDonald’s no shopping, toda sexta feira eles me buscavam na escola para tal programa, voltávamos para a casa e nós, as crianças, ficávamos em um sala vendo desenhos e minha avó na outra sala vendo meu avô no Jornal da Band. Como ela tem problema de audição a gente acabava ouvindo ele da outra sala por conta do volume da televisão.

Assim que acabava o programa, minha avó ia esquentar o jantar e logo depois ele aparecia em casa e era sempre a maior alegria de todos, passávamos a semana inteira esperando para ver ele. Ele chegava sempre alegre e brincalhão, abria uma garrafa de vinho, sentava no sofá conosco e minha vó lhe trazia a bandeja com a comida. Ele passava quase duas horas comendo, muito devagar e mastigando bastante. Passávamos horas assistindo desenhos e filmes. Sempre dormia junto, no meio entre meu avô e minha avó, e ele sempre me contava antes de dormir histórias sobre o “Bico de Pato”, uma montanha que tinha em sua cidade natal que tinha o formato de um bico de pato. As histórias sempre foram em relação à sua cidade natal, Tambaú, que fomos conhecer um dia junto a ele. Fomos em sua casa, conheci sua irmã que ainda vive lá até hoje e fomos até onde ele cortava cana e conheci o famoso Bico de Pato. Aliás, foi onde fiz meu primeiro “graffiti”, minha primeira “pixação”. Com uma chave de fenda, meu avô me ajudou a escrever meu nome na pedra próximo onde fica uma das cavernas da montanha. Tenho essa foto muito bem guardada até hoje.

Aos sábados eu ia com ele no clube, eu assistia ele jogando tênis e depois ele me assistia jogando futebol. Depois almoçávamos a família inteira em um restaurante e passávamos a tarde e a noite juntos. Nos domingos íamos sempre à missa do Padre Clemente, em uma capelinha de madeira, muito bonitinha, escondida às margens da Marginal Tietê, próximo do shopping Cidade Jardim. Às vezes ficávamos com tédio e íamos para fora da Igreja, ao fundo, ainda ouvindo de longe, mas ficávamos conversando. Ele era meu melhor amigo. Fazíamos tudo junto.

Ele foi a primeira pessoa que se foi que era próxima a mim. Eu nunca tinha tido uma relação com a morte. Não pensava nisso. Nunca tinha passado por essa experiência, de perder alguém que você ama incondicionalmente. Saber que eu nunca mais veria ele colocar apenas a cabeça na porta da sala de TV, um dos jeitos engraçados de anunciar sua chegada, que eu nunca mais apoiaria minha cabeça nele enquanto assistimos televisão, nunca mais iriamos passear juntos, viajar, dar risadas juntos de suas brincadeiras. Jamais faria nada disso novamente. Era algo que nunca havia passado, nunca havia pensado nem vivenciado nada próximo da morte.

Joelmir dando aulas de economia para Fidel Castro em Havana, Cuba no ano de 1985

Estava eu, como sempre, na madrugada, jogando videogame, como eu fazia todos os dias. Com o computador ao meu lado ouvindo música e com as redes sociais abertas. Uma notificação de menção surgiu no twitter, ao ler estava a seguinte mensagem, curta, rasa e fria, de uma pessoa que eu não fazia ideia de quem fosse. “meus pêsames :(“. Olhei a mensagem e fui responder “mas ele ainda não morreu…”. Antes de enviar pensei um pouco e disse em voz alta “será?”. Pesquisei o nome do meu avô no Google e a primeira coisa que apareceu foi a notícia de sua morte no G1, publicada às duas horas da manhã. Um sentimento estranho tomou conta de mim, tanto pelo fato dele ter partido para sempre sem que eu pudesse me despedir como pelo fato de como eu descobri sua morte.

Abri a porta do quarto e fui até o quarto da minha mãe lentamente e a ouvi através da porta fechada, ela chorando no telefone. Voltei ao meu quarto e tirei o jogo do pause, sem saber muito o que pensar ou fazer. Minutos depois minha mãe entra no quarto pra tirar meus aparelhos eletrônicos para que eu não descobrisse a notícia, mas já era tarde demais. Ao entrar e me ver acordado, eu disse “eu já sei” e ela começou a chorar mais ainda e me abraçou.

Cachorro abandonado em fábrica abandonada no extremo sul da cidade

Até hoje acho bizarro a forma que fiquei sabendo da morte da pessoa que mais amo. Me recordo de todos da família juntos na sala em que eu sempre assistia filmes e desenhos com meu avô, só que dessa vez estávamos todos assistindo ao vivo a matéria em homenagem a ele, que terminou com os apresentadores da época, a Ticiane e o Boechat, chorando ao vivo na volta da matéria pro estúdio.

O que mais me arrependo, é de nunca ter trocado um papo cabeça com meu avô. Uma pessoa tão inteligente, com uma história recheada de muitas batalhas e conquistas. Mas eu era muito novo. Não tinha idade, repertório e muito menos passado por essas experiências. Sempre me pergunto o que meu avô diria sobre determinadas coisas. Tenho apenas boas memórias deles e isso me conforta. Fico extremamente feliz quando alguém diz que admira ele, seu trabalho e suas falas. Sinto muito orgulho de ser seu neto e dou graças a ele por tudo que tenho, foi ele quem me deu todas as oportunidades que tenho hoje. Devo tudo a ele.

Após 2012, percebi que nada é pra sempre. Eu nunca pensava no fim das coisas, não me importava com isso, vivia numa realidade em que tudo parecia ser eterno. Esses três acontecimentos que ocorreram naquele ano, me fizeram crescer. Me fizeram amadurecer. Me fizeram mudar meu jeito de olhar o mundo e meu jeito de ser no mundo. Parei de pensar que tudo é pra sempre.

Na época eu jogava videogame. Mas não era pouco, era muito. Eu era viciado. Eu até participava de um time profissional, ganhava dinheiro para jogar. Minha vida era jogar. Um dos motivos de ter acabado meu relacionamento no começo daquele ano foi justamente o fato de eu dar mais atenção ao jogo do que a ela.

Meu cantinho onde passei anos jogando. O mesmo em que li sobre a morte de meu avô. Foto tirada em 2013

Passei quase 3 anos jogando videogame sem parar, e o que isso me trouxe? Fiz muitas amizades no jogo, que converso até hoje em dia, aprendi e desenvolvi muitas coisas jogando e tendo contato com essas pessoas. Porém eu não estava vivendo de verdade. Não vivia a vida. Tudo o que eu fazia era virtual. Minhas conquistas eram números. Decidi largar o videogame e encontrar algum significado maior, buscar algo que me faça ter orgulho de mim, do que eu faço e ter boas histórias na memória, para relembrar para sempre.

Sempre gostei de fotografar e filmar. Congelar o tempo, uma determinada ação, um momento, um dia memorável. É uma ferramenta de recordação, e com um certo olhar, uma forma de arte e protesto muito forte. Comecei então a ir pra rua com amigos registrar eles andando de skate. Passei a ter outra relação com a rua e como a fotografia poderia estar incluída nela. Um skatista fazendo uma manobra dentro de uma geometria urbana era, e ainda é, poesia pra mim, e tentar enquadrar eles dentro de formas geométricas me instigava e ainda insitga.

Skatista fazendo manobra embaixo do Viaduto Aricanduva

Fotografia de rua para mim é registrar uma cena que acontece diariamente, elementos comuns que passam despercebidos pela maioria das pessoas, mas capturando apenas uma fração desse momento, de certo ângulo, é possível a criação de uma obra de arte, que com certeza será única, pois não existem dois iguais. Nunca.

Passei a explorar mais a cidade a partir daí, me aventurando por onde eu sempre passava de carro. Comecei a andar a pé, pegar metrô e busão. Era como se eu saísse do casulo, descobrindo um mundo novo. Comecei a apreciar e observar onde eu morava, de uma maneira peculiar.

“Joinha” do busão na Av. Ipiranga

Sempre que eu registrava a arquitetura da cidade, os graffitis e pixações estavam presentes. Aquilo me fazia questionar o que era aquilo. Por que faziam e o que significavam. Me chamou muita a atenção e comecei a fazer. Foi um processo de descoberta muito intenso e puro. Uma nova realidade, muito próxima da minha geograficamente mas muito longe socialmente, aparecia em minha frente. Eu não só ouvia sobre, mas eu via a realidade. Os graffitis que pintei e os registros de ações com pixadores e grafiteiros que fiz e venho fazendo me proporcionaram experiências únicas, que jamais teria de outra maneira.

Pixador pintando a lateral de um prédio na Av. São João
Condomínio abandonado na Vila Nova Conceição, na direita é possível observar meu amigo, sentado tirando uma foto

Conheci muitos lugares por conta dessa cultura, conheci inúmeras pessoas que considero muito e me ensinam muito. Me fez questionar muito a cidade e o país em que vivo. Eu não sei o que seria de mim sem o graffiti, não consigo imaginar como seria a minha pessoa sem as vivências, amizades e experiências que tive e vivi nesses últimos seis anos de minha vida.

O graffiti influenciou nitidamente na minha visão de mundo e nas minhas produções artísticas. Por conta das vivências que o graffiti me proporcionou que eu aprendi a andar melhor por São Paulo, conseguindo entrar e sair de qualquer lugar. Fiquei mais atento e comunicativo, converso com qualquer um na rua ou em qualquer lugar. Minha atitude e visão para ir atrás e descobrir lugares abandonados, topos de prédios, túneis de carro, linhas de trem e do metrô, devo ao graffiti. Buscava, e ainda busco lugares inusitados, onde pessoas acham que não são possíveis acessar, mas que só não acessam pois não tem a ambição e atitude necessária.

Heli ponto do prédio mais alto da Avenida Paulista, ponto mais alto da cidade

Tenho fortes convicções de que se os acontecimentos de 2012 não tivessem ocorrido, minha vida teria tomado outro rumo. Esse ano, tenebroso na época, me ensinou muitas coisas e me fez amadurecer muito. Por isso minha vida, até o momento, é dividida nessas duas partes.

Tudo em nossas vidas que acontece no presente, no agora, e enquanto acontece é algo ruim, algo negativo. Esse acontecimento é ruim apenas nesse momento em que ele acontece, no presente em que você está vivendo. No futuro essas coisas servirão se ensinamentos, se tornarão lições a serem aprendidas. O ser humano infelizmente, só aprende ou errando, ou perdendo. Se estamos felizes no presente, muitas das vezes não damos a devida importância e atenção, às vezes nem sabemos que estamos felizes até perder algo. E quando não estamos felizes no presente, isso um dia se tornará algo positivo. Períodos negativos em que você amadureceu por conta deles. Dias melhores virão.

Foto tirada no topo da Ponte Estaiadinha, na Marginal Tietê

A Antroposofia é uma linha de pensamento criada pelo filósofo Rudolf Steiner que compreende que o ser humano tem que conhecer a si para também conhecer o Universo, pois somos todos parte e participantes desse mundo. Para Steiner, a Antroposofia é “um caminho de conhecimento que deseja levar o espiritual da entidade humana para o espiritual do universo”.

Eu no topo do Shopping Iguatemi, observando um arco íris se formando por cima do bairro dos Jardins. Foto tirada por meu amigo Pedro Konstadinids

Dentro desse pensamento filosófico, existe uma forma cíclica de observar a vida humana, que é a “teoria dos setênios”. A ideia central dessa teoria é a de que a vida é dividida em fases, ciclos de sete anos e que a cada ciclo, soma-se conhecimentos adquiridos no anterior e busca-se um novo desafio.

Na transição do segundo para o terceiro ciclo, aos 14 anos, a experiência estética que foi esse ano inteiro de 2012, moldou minha forma de pensar, para que o terceiro ciclo fosse repleto de descobertas. Graças a tudo que citei aqui, o terceiro ciclo de minha vida, dos 14 aos 21 anos foi um período muito bom em minha vida, o graffiti me trouxe uma razão para ser objetivo e a fotografia me trouxe um olhar para dentro de onde eu vivo, a combinação dos dois me trouxe liberdade, que foi a palavra chave para esse terceiro ciclo, me preparando para a entrada no quarto ciclo, que inicio agora.

Foto tirada no túnel do metro de São Paulo
Foto tirada em cima da Ponte Estaiada, na Marginal Pinheiros

Me sinto sinto preparado e ansioso com esse novo ciclo que estou entrando agora aos 21 anos. Às vezes ansioso até demais. Nunca gostei tanto de estudar e nunca tive tanta força de vontade quanto estou tendo agora na faculdade. Sinto que me achei, estou indo na direção correta.

Igreja na beira da linha do trem em Carapicuíba

Aos 14 anos de idade em 2012, passei por esses acontecimentos descritos aqui que me fizeram crescer como pessoa, somando isso com um bom ambiente familiar e escolar que tive a vida inteira e continuo tendo, resulta em uma boa formação. Acredito que começo o quarto ciclo pronto para os próximos desafios.

Pátio de trens abandonados da CPTM na Lapa
Fábrica de cimento abandonada na Zona Oeste de São Paulo

Nunca pare de explorar, descobrir, viver.

“Don’t live your life like you are waiting to die”

*Todas as fotos, menos as que meu avô aparece ou as qual eu cito na legenda o fotógrafo, foram eu quem as tirou. Disponíveis em meu Instagram pessoal.

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