Meu amor

Uma carta aberta a um dos maiores amores da minha vida

JV
Iandé
3 min readMay 16, 2022

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Meu amor,

Primeiro foi a sandalhinha roxa com brilho azul. Em uma loja cheia de brinquedos, você, que tinha dado seus primeiros passos uma semana antes, correu para ela e a abraçou como se fosse seu maior tesouro. Depois dela vieram outras sandálias, vestidos, laços e fantasias. Seu pai e eu sempre deixamos você escolher o que vestir e tudo nos pareceu normal, a despeito dos olhares tortos.

Seu armário foi se enchendo de rosa, de roxo, de glitter. Aos poucos, mas muito marcadamente. Você falava pouco, mas logo ensinou a todos e, também, à Alice, que seu nome era Elsa (você futuramente viria a adotar outro nome), sua princesa-heroína favorita. Quando ela falou o próprio nome pela primeira vez, apontou em seguida para você e lhe nomeou assim, como você havia pedido, num ato tão simples mas que levou um sorriso imediato ao seu rosto.

Nossa viagem que a levou à loja da sandália roxa foi em 2018. De lá para cá, seu pai e eu nos separamos e nós três (sua irmã, você e eu) nos mudamos para o Brasil. De lá para cá, eu aprendi que sua insistência e persistência em pertencer ao universo feminino não seriam coisas passageiras e tive que guiar seu pai na mesma direção. Foram inúmeras conversas com psicólogos, psiquiatras, pediatras, com a escola.

Aprendi que ser trans é ser quem você. Aprendi que é algo que se manifesta, sim, na infância. Dois meses atrás você me disse que era menina e tudo o que eu me perguntei foi como eu não sabia antes. Como eu pude ser tão negligente a ponto de pensar que qualquer sigla LGBTQIA+ era uma fase?

Conforme seu cabelo cresce eu vejo seu sorriso crescer. Se qualquer um pudesse entender o quanto seu olho brilhou no dia que conseguimos fazer um rabo de cavalo pela primeira vez, não iam julgar. Não iam perguntar o porquê de eu não te obrigar a usar jeans e camiseta polo, não iam sugerir que eu cortasse seus cachinhos à força.

Se eles pudessem sentir sua felicidade em usar uma saia para ir para a escola, se soubessem de cada abraço e cada obrigada que eu escuto quando você veste uma roupa rosa brilhante, não iriam perguntar tantas vezes sobre a sua identidade.

Semana passada a escola trocou sua foto na lata de pintar, trocou seu nome também. Você ainda não sabe ler, mas sabe que seu nome não é o que eu escolhi quando você nasceu. Me desculpe por confundir sexo com gênero. Me desculpe por dizer, quando sua irmã nasceu, que meninos tinham uma coisa e meninas outra.

É interessante como até quem faz parte da sigla do arco-íris desconhece as dificuldades daquele T. Desculpe não lhe trazer para um mundo mais justo, por não saber como, por não ter como, lhe proteger dos olhares, dos comentários, daquilo que nem chegou, mas que eu sei que vem.

Não queria que você soubesse hoje, nem amanhã, então eu escrevo para que um dia você possa, adulta, ler: eu tenho medo; todos os dias. Não de quem você é, de quem nós somos. Você é linda, meiga, inteligente. Eu tenho medo do que o futuro vai ser, das coisas que você pode passar, dos momentos em que eu não vou poder estar lá para me jogar na frente dos problemas e dizer que vocês duas podem escolher a sandália que quiserem.

É muito fácil ser sua mãe: você é uma criança tão doce, tão eloquente, tão corajosa. É injusto que o mundo torne essa tarefa em algo que me preocupa. É injusto com você e com a sua irmã que eu deixe essa preocupação transparecer, e eu sei que eu deixo. Mas eu prometo, para você e para a sua irmã, que eu estou fazendo meu melhor. Isso é absolutamente tudo o que eu posso fazer hoje.

Com amor,

Mamãe

Meus amores descem as escadas de uma festa de aniversário. Foto/Arquivo pessoal

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