Minha Geração Perdida

Letícia Pereira Rebello
Iandé
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11 min readApr 20, 2019

Por Letícia Pereira Rebello

A Girl Reading a Book de Philip Wilson Steer (1860–1942).

Minha experiência estética vai se apoiar em minhas leituras, lidando com o tema o qual mais me impactou e mais gostei, fruto de um conjunto de escritores e pensadores do Século XX, a “Geração Perdida”. Minha experiência estética é sobre meu contato com um certo tema em minhas leituras (será mais bem explicada nas futuras estrofes), mudando meus gostos e até talvez minha mentalidade, e meu objetivo é tentar passar essa experiência, para isso escolhi um dos livros que creio ser um bom canalizador (e resumidor) deste meu tema. De todos escolhi justo Demian de Hermann Hesse.

Livro Contraponto de Aldous Huxley, escrito em 1928.

Poderia ter usado Huxley com seu livro Contraponto, apesar de não ser a obra principal dele (Admirável Mundo Novo não achei tão formidável como afirmam), Contraponto é genuíno pela proposta de ilustrar uma transformação no espírito europeu, acompanhando pequenos grupos de uma comunidade britânica interligadas por laços, mostrando as mudanças e os confrontos de pensamento tendência da velha Europa para a nova que se aproximava. Historiadores alegam que o século XX demorou para eclodir, não sendo fruto de uma passagem de data e sim na passagem de um tiro na cabeça de certo Príncipe Austro-húngaro, Europa entra no século XX nas modificações estruturais e psicológicas consequentes da primeira guerra. Não é preciso ler clássicos para saber disso, um livro que não é clássico (apesar de ser datado no final do século XIX, isso não o faz ser clássico), o Rei de amarelo retrata em muito da claustrofobia e crises psicológicas que continuaram no europeu e em seu imaginário (reproduzido em suas artes atormentadas). Rei de amarelo é uma coletânea de contos de pessoas que leram uma peça de teatro que enlouquecendo a todos quando terminada, aparecendo como um demônio contorcendo de pavor aqueles que o conhecem (algo que o leitor em nenhum momento realmente entende ou conhece o que se trata à obra alucinante do próprio Rei de Amarelo), como a própria guerra não basta lê-la (ou vê-la nas telas), seu verdadeiro significado está em seu encontro, assim como a morte, ela mancha e volta como um alucinação. Posso ver o Rei de Amarelo como uma alucinação do desastre podrido do homem europeu, repassado pelos seus atormentados artistas, aqueles que conheceram o “Rei de Amarelo”.

Livro Rei de Amarelo de Robert W.Chambers, escrito em 1895.

De todo este contexto, o tema que tento pautar é esta experiência amarga de desilusão de si e do mundo fragmentado, pois acho pessoalmente este período de crise, depressão e conflito de identidade como um período para os melhores livros,o pós primeira guerra foi o adubo necessário para que esse tipo de tema não floresce e sim se proliferasse pelo globo. É pela profundidade que é imersão do caos humano que o torna tão fascinante, algo que criamos para nós e alimentamos como origem de qualquer vida, é a morte antes do nascimento, é a queda para um levante (muitas vezes não tao boas como poderia ser). Conflito, dor e desesperança são as condições naturais do desenvolvimento do homem, o incitando a lutar com si e com o mundo. Como “ser é ousar ser” uma das frases mais emblemáticas de Max Demian. Minha escolha deste livro como representativo do meu gosto e como este tema aparece para mim, é por eu achar ser uma boa introdução ao tipo de experiência que tive, como um tipo de canalizador da minha experiência pelo tema, desenvolvimento da narrativa, e simbologia de Hermann Hesse nesta sua obra, para ver se consigo passar para vocês ao menos um relance de como foi mergulhar neste caos renovador da literatura — sei que há outras formas de entrar em contato com este tipo de espírito, se não lhe agrada literatura recomendaria O Clube da Luta, não o livro e sim o filme (que conseguiu pegar mais o sentido que o próprio livro), vê-lo me foi também inspirador, posso até dizer que a origem pela procura (até que constante) por este tipo de obra “densa” veio pelo que senti naquela noite quando a vi.

Poster do filme Clube da Luta de 1999.

Contudo, voltando ao assunto essencial, Demian foi o primeiro livro de Hermann Hesse a ganhar um prêmio, sendo conhecida como sua obra de amadurecimento. Publicada em 1919, acerta o espírito da época: uma Europa devastada pela Primeira Guerra Mundial, com um certo temor tenso entre os países, todos procuravam algo que já tinham perdido na guerra e Demian poderia ser essa busca.

Livro Demian de Hermann Hesse, escrito em 1919.

Tem um fator curioso nos próprios leitores de Hermann Hesse. Seus livros foram mais lidos em momentos de tensão de guerra (Tanto que Max Demian acontece todo o livro no antes Primeira Guerra, seus livros retratam esses períodos). Aconteceu que depois da Segunda Guerra Mundial Hermann quase chegou ao esquecimento literário. Foi retomado pelos americanos, que estavam em uma Guerra Fria com a tão temida União Soviética. E mais interessante ainda é notar que seus livros atraem leitores mais jovens. Isso é fácil de perceber, no livro Max Demian, é começado narrando dois tipos de mundo, um claro e escuro — um socialmente moral e outro imoral. Mostrando como a juventude de Emil Sinclair (o protagonista) foi imaculada por estes poucos encontros com a parte escura de sua vizinhança, e como estes encontros o fazem cada vez mais cair do paraíso seguro de seus pais para uma vida confusa e bagunçada, a obra aborda a passagem da infância à juventude, momento este que todos um dia sentiram ou irão sentir.

Vendo por esta ótica, deixa com ainda mais significado o encontro de Emil Sinclair (protagonista do livro) com o tão famoso (e título da obra) Max Demian, que não só era repleto de mistério de um novo aluno da escola, ele tinha uma atração própria, sendo excelente em tudo o que mais podia fazer, era inusitadamente original, tendo o acaso de se interessar em Emil, um jovem fraco, confuso, e facilmente influenciável, como uma criança.

“Morte de Abel” — Gustave Doré
Pintor e gravurista francês (1832–1888).

Uma pseudo amizade só começa quando Demian consegue afastar o bully de Emil, Demian acaba se tornando um guia espiritual para Emil, um norte para sua passagem e busca do término do medo de seu próprio amadurecimento, abismar-se nas terras do mundo adulto. Neste mesmo período Demian conta uma nova interpretação da história de Caim e Abel, uma interpretação de Caim como um homem destemido e singular. Enquanto todo o resto era rebanho, Caim era especial e possuía “a marca” que o fazia ser temido pelo grupo, sendo perseguido e condenado. É a força individual morta e engolida pelo social. E Demian alega que ambos têm a marca de Caim, essas pessoas marcadas se reconhecem e são capazes de se comunicar — lembrando übermensch (super-homem) de Nietzsche. Emil Sinclair eventualmente deseja pertencer ao rebanho, mas é incapaz disso. Angustiado por se perceber diferente, e pouco a pouco aceita sua própria natureza e a marca de Caim, parando de procurar grupos e pessoas para “se encaixar”.

O resto da história para evitar spoilers, é Emil enegrecido pela maturação forçada (como sempre é) tentando se conectar com o que foi Max Demian torcendo para encontrá-lo mais uma vez, enquanto conhece novos contatos que poderia estabelecer consigo mesmo.

Uma das coisas que mais gosto deste livro são as analogias e simbolismos, ao ponto de não serem apenas elementos influenciadores da história, e serem a própria história. A passagem da criança ao adulto, o que morre neste rito de passagem e o que se deveria conhecer e manter contato. Demian é o que poderia ter de melhor em nós, e em Emil que como nós, é fraco, controverso, entre outras características não muito louváveis que foi mostrado no livro, uma criatura falha; se Sinclair é pura dúvida, Demian é convicção plena, se Sinclair é medo, Demian é coragem desmedida. E um certo carinho que surge pela mãe do amigo (algo não fundamental a trama ao ponto de ser colocada como Spoiler pela baixa atuação na narração), Eva, seria o amor que se sente ao se relacionar cada vez mais com a ideia do melhor no todo, a mãe é o ideal do aperfeiçoamento humano, do melhor que nós, ele e toda a sociedade poderia alcançar.

Tanto que no livro, tem algumas descrições estranhas sobre a relação de Demian e Emil, talvez insinuando um afeto maior de Max pelo Sinclair. Mas tudo ficas as entrelinhas porque a narração foco não é em Max Demian e sim o efeito de Max Demian no pequeno e caído Sinclair, condizendo de forma mais profunda este afeto leal e forte de Demian por Emil. Como toda parte boa nossa, acaba se apaixonando pelo lado débil, acreditando nela, ajudando-a, é o amor a si próprio, enquanto a mãe é o nosso amor às ideias, fonte da idealização de Max, sua força, coragem, desenvoltura, o melhor de Max que está no melhor em todos.

Livro Metamorfose de Franz Kafka, escrita em 1912 (publicação 1915).

O livro todo, enfim, é uma alegoria ao crescimento e desenvolvimento do consciente e inconsciente de uma criança ao mundo adulto, tanto relacionando as suas relações dentro de si como com o mundo. Mas o mais fascinante de Hermann Hesse e Demian é esta procura por uma individualidade, algo que não se encontra em muitos livros quaisquer, foi aquela época que benzeu este enfoque, frutos da Primeira Guerra Mundial e dos loucos anos 20, chamados de Geração Perdida, estes autores sentiam e passavam a falta de estabilidade e certezas, por isso o resgate ao interior individualista do homem contracenando com as distorções que um grupo faz ao único (quer um exemplo? Coloque Metamorfose do Kafka aqui para compreender algo mais profundo, um homem trabalhador se vê percebido, tratado e transformado em uma barata pela falta de individuação arrancada pelas consequências e afirmação de terceiros, mais a sua passividade a este destino), neste sentido há um berro pela certeza em algo de você mesmo. Um bom exemplo desse destaque a unicidade de existir e ser (e a força que isso tem) temos a obra célebre para esta geração de escritores, Ulisses de James Joyce, um livro que propõe narrar o dia de um homem comum como se fosse uma das maiores epopeias, porque a vida é isso mesmo, curta, ínfima mas profunda e abrangente.

Livro Ulisses de James Joyce, escrito entre 1914 e 1921 (publicação em 1918).

Um bom exemplo desta minha afirmativa de Max Demian, e a frase mais conhecida do livro:

“ — Quem quiser nascer tem que destruir um mundo; destruir no sentido de romper com o passado e as tradições já mortas, de desvincular-se do meio excessivamente cômodo e seguro da infância para a conseqüente dolorosa busca da própria razão do existir: ser é ousar ser.” (Demian)

Com o contexto já conhecido e visto, esta frase é muito mais profunda que o esperado de uma frase de autoajuda. A marca de Caim, resumidamente, é a marca do assassino. “Destruir o mundo” envolve sair do rebanho, nascer como indivíduo, e isso envolve abraçar um aspecto bestial que nos torna assustadores. Max Demian é abraçar tanto a humanidade como a falta dela se aceitando como apenas um ser único e não um aglomerado de seres.

“Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo” de Salvador Dalí, 1943.

Depois disso, acho que é compreensível meu gosto por este tipo de tema, é simples, intenso e real. Provavelmente ter tido o contato com este tipo de livro deve ter causado alguma mudança em mim, ainda mais pelo apego a minha própria fase de mudança mergulhando nesse mundo ainda estranho dos adultos. Gosto da incerteza e desconfio de quem não as tem.

Livro Os irmãos Karamázov de Fiódor Dostoiévski, escrito em 1879.

Com tudo isso espero que vocês tenham sentido apenas um lampejo do que foi minha experiência e vontade de saber, ler conhecer mais deste tipo de sensação e raciocínio que apesar do século passado não tem como ser mais atual.

Esta vontade de mais foi me levando experimentando outros ramos deste mesmo núcleo de dizeres. Como o desejo por livros mais profundos e densos, me levando a literatura russa repleto de dúvidas e dilemas da própria pessoalidade de alguém se surpreendendo da desmentira do que é ser alguém, como em Os Irmãos Karamázov todas as certezas nossas e dos personagens é quebrada só se mantendo forte a esperança do mais crente (os fortes morrem traídos e os inteligentes sepultados pelos burros).

Livro O Grande Gatsby por F. Scott Fitzgerald, escrito em 1925.

Me levou também a ler livros mais experimentais dos loucos e escandalosos Anos 20 sendo a quebra de toda regra vigente, como foi bem ilustrado no livro americano O Grande Gatsby contando a história dos valores distorcidos encontrados no que menos se esperava encontrar, é a história de um homem de sucesso que usou a lama para atingir um ideal puro não encontrado (e nunca existido) em ninguém fora à si mesmo, e como aqueles que se embelezavam do ideal o chafurdam em lama; ou até mesmo a quebra direta da própria narração clássica como em O som e a fúria (um novo tipo de narração conhecida e usada pela Geração Perdida), é um livro sobre a decadência sulista americana, vemos isto esboçado na narração psicológica dos três irmãos às ordens de eventos fundamentais para entendermos a protagonista irmã deles, cada qual narração leva fortemente marcado as individualidades de cada irmão distorcendo a ordem de eventos, um prejudicado mentalmente, um romântico egoísta e um mal caráter azedado pela má vida que não pode escolher.

Livro O som e a fúria de William Faulkner, escrito em 1929.

Espero que os tenha incitado com toda esta nova porta de compreensão a si mesmo e do mundo, pois o que é mais fascinante, a cada folha virada você está virando uma folha de si mesmo, e esta é a verdadeira experiência que a própria leitura proporciona, a minha foi para este lado individualista da formação de seu consciente (influenciado e tomado pelo seu inconsciente, isso quando não é alterado pela força destrutiva do coletivo, igualdade e liberdade não combinam tanto quanto grupo e você mesmo). Como é bem dito pelo poeta esperantista Jorge Camacho em Koploj kaj filandroj (Canção e Fama) de 2009:

Melancholy, esboço de Edvard Munch (1908–1910).

“(…) En ĉiu homo brulas la dilemo

sin apartigi, tamen aparteni.! (…)”

“(…) Em cada pessoa, arde o dilema

não pertencer, ainda que pertencendo (…)”.

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