Minha Obsessão por Autorretratos

E meu fútil hábito de me desenhar.

Caio Rodrigues Pires
Iandé
6 min readApr 18, 2018

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Desde os 14 anos eu me forço a desenhar pelo menos uma hora por dia, todos os dias. Não sei bem como ou por que comecei esse hábito, talvez por uma vontade de tentar ser bom em algo ou pela disciplina da rotina, algo que me faltou muito desde a infância. De qualquer modo, comecei a me expressar sem usar palavras.

Autorretrato de M.C. Escher; Hand with Reflecting Sphere, 1935

Vejo os desenhos que diz naquela época e muito mudou desde lá (ainda bem, visto que eu teria jogado umas 2 mil horas no lixo sem evolução técnica), como meu traço e o fato que consigo expressar-me melhor agora. Contudo, algo sempre ficou igual: minha obsessão por autorretratos. Mesmo quando pequeno, os quadros que mais me chamavam atenção em visitas à museus eram aqueles criados por um artista se olhando, transmitindo como ele se enxerga através de suas mãos.

Las Meninas, Diego Velázquez, 1656

Talvez o quadro que mais me chocou quando vi pela primeira vez foi Las Meninas, de Diego Velázquez. A maneira pela qual o mestre espanhol transita através de uma cena cotidiana da realeza espanhola é estonteante. Pintar somente a princesa com seu corte de meninas seria muito simples, então ele decide pintar o cotidiano da família como ele o vê: o cotidiano da família real quando ele, o pintor oficial, está presente. Não estamos vendo Velázquez pintar as meninas, nem a si mesmo, como podemos ver ao fundo da pintura, há um espelho refletindo os sujeitos que têm o ponto de vista apresentado a nós: Filipe IV e Mariana de Áustria, o Rei e a Rainha da Espanha. Logo, olhando para o espectador, que está sendo colocado humildemente pelo pintor nos olhos da Alta Nobreza, está Velázquez, apático, cumprindo seu trabalho enquanto uma cena de cordialidade e leveza ocorre ao seu entorno.

Autorretrato, Pablo Picasso, 1899

Talvez Velázquez queria dizer algo a mais com essa pintura, talvez em um ato de certo desgosto falaria “olha o que tenho que conviver quando estou trabalhando”. Talvez queira enaltecer o espectador, dizendo “olhe o que você pode ser, a arte pode transformá-lo em um Rei ou uma Rainha”. Ou talvez o pintor só estava entediado de pintar os mesmos retratos e queria incluir-se em sua obra tal como tantos outros fizeram (Rafael em Escola de Atenas, por exemplo). De qualquer modo, um autorretrato nunca é somente aquilo que vemos. Diversos artistas poderiam apenas tirar fotos de si mesmos se quisessem mostrar seus rostos, digo isso sem querer desmerecer a fotografia, que também tem a própria linguagem e metáforas, mas pintores decidem usar de tal método, de tal pincelada, com tal paleta que mostra a maneira como ele se vê, como ele se enxerga. Talvez seja a maneira mais honesta que você pode conhecer como tal pessoa se enxerga. Palavras mentem, opiniões mudam, pontos de vista são contraditórios; mas ao pintar, seu subconsciente toma controle da leveza do pincelar, e é possível tocar através do espelho que o artista usa.

Auto-Retrato, Vincent Van Gogh, 1889

Escher usou de distorções no próprio corpo e na sua sala, talvez mostrando o jeito que ele consegue perceber pequenos detalhes que, quando alterados em sua forma física, mudam a concepção de mundo. Picasso usou de traços fortes e deformados, típicos do cubismo, podendo mostrar que ele sabia que havia algo nele que ele não gostava, algo de vulgar e expressivo, que talvez ele só notou ao sair de sua bolha dois anos depois, que ao explodir o levou à uma depressão que conhecemos como seu Período Azul. Van Gogh usou pinceladas leves que parecem serem mexidas com o próprio vento holandês enquanto pintava, podendo nos mostrar uma leveza em como ele via o mundo enquanto pintava, ou o quanto pequenos detalhes como o jeito que o vento bate em suas roupas são importantes para ele: presumo que é assim que vivia, desprovido de dinheiro, mas plenamente contente ao ver o mundo pelas mãos, tanto que até o ar batendo em seu rosto ganha importância para ser exaltado à sua volta.

Falo tudo isso não para tentar te mostrar como esses artistas poderiam se ver, mas para tentar entender por que eu tenho a relação que eu tenho com meus autorretratos.

Vou tentar explicar melhor: eu nunca gostei de me olhar no espelho. Ou tirar fotos. Ou ouvir minha voz. Mas algo que sempre gostei foi de desenhar, e me desenhar em específico. Pode ser por um acaso que meu rosto é aquele que tenho mais familiaridade ou que meu rosto seja bem simples de fazer uma caricatura. Realmente não sei, mas posso dizer que meus autorretratos, para mim, vão muito além do meu cabelo ou do óculos que usei no dia: eu posso olhar os desenhos que fiz e me colocar de volta no jeito e no momento que estava vivendo comigo mesmo.

Talvez como um pintor consiga transmitir o seu inconsciente pessoal pela sua arte, talvez eu esteja fazendo o mesmo sempre que me desenho. Além do que, eu tenho sempre a mesma sensação para cada retrato meu: eu nunca gosto deles.

Isso não quer dizer que eu despreze o valor estético ou minhas habilidades no momento que o fiz, mas sim que eu não gosto de quem eu estou retratando. Eu não gosto de mim mesmo. Não consigo escapar do pensamento que o que sinto por mim (não é ódio ou algo assim, talvez mais um desgosto) atravessa por sinapses da minha cabeça até a ponta dos meus dedos e forma um monstro que não me interessa e muito menos me orgulha.

Eu tento me olhar de diversos ângulos, de cima para baixo, de dentro pra fora. Uso técnicas e materiais diferentes, uso minimalismo, tento fazer realismo, vetorização, primitivismo… não consigo me ver, ver minha imagem pelos meus olhos, pelos meus dedos, e gostar. Talvez porque sei que aquele que estou retratando é aquele mesmo que retrata, num ciclo de pessimismo mútuo onde um quer aumentar a beleza do que está vendo e o outro está tentando se esconder através da habilidade do outro.

Abaixo, está um dos únicos retratos meus que eu gosto.

Stephanie Borges, 2018

Não é por acaso que não é meu, é de uma colega e querida amiga minha.

Estranho pensar que o único jeito que consigo me olhar e gostar daquilo que vejo é pelo olhar de outar pessoa.

Talvez isso ocorra com os artistas que citei. Talvez eles odeiam os quadros que eu tanto amo e penso sobre. Talvez todos nós odiemos quem somos, mas ninguém nos leva a sério pois é muito difícil odiar outra pessoa, mas todos entendemos exatamente porque sentimos a mesma coisa. Não sei responder absolutamente nada, esse texto é mais um ensaio do que qualquer coisa.

Queria acabar com uma frase que uma querida amiga minha, Thais Silva, me disse em uma de nossas inúmeras conversas sobre quem somos e como nos vemos como pessoas: “A vida é uma constante busca de como ficar bem sozinho.” Espero que um dia eu consiga ficar bem sozinho, sozinho junto com meus lápis, canetas, pincéis, espelhos e pensamentos.

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