Mutante

Rafael Regis
Iandé
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4 min readDec 2, 2019

Por Rafael Regis

Título: Rafael Augusto Curci Regis / Criador: Rafael Regis, Raimunda Gonçalves, Giovanna Regis, Christiane Regis e Caio Regis / Data de Criação: 1997-

Eu nasci um mutante. Quando eu tinha cinco anos de idade, descobri que tinha quatro dentes de bebé extra alojados nas minhas gengivas. O que parecia ser um sorriso de criança normal por fora era um close-up complexo de um mosaico de Picasso por dentro.

No dicionário, um “mutante” é aquele que sofre uma “mutação”, ou seja, uma modificação genética aleatória que faz com que as características físicas mudem do que é normal. Ser “normal” significa quase sempre estar em conformidade com um tipo, um padrão regular, e não se desviar de uma norma. Ao contrário dos exemplos que lutam contra o crime na mídia, como tartarugas mutantes e amantes de pizza, ou um jovem se transformando em um híbrido radioativo humano-aracnídeo; minha mutação simplesmente produziu quatro dentes extras.

Então, para esses padrões, sim, eu sou um mutante. De acordo com Darwin, as mutações impulsionam a seleção natural, em que apenas as melhores adaptações serão realizadas no próximo passo da evolução. No entanto, as mutações genéticas raramente são inteiramente benéficas, ao invés disso, elas geralmente acarretam consequências positivas e negativas, como a minha. Eu não tinha idéia da marca que essas conseqüências deixariam em minha vida.

O aspecto negativo da minha mutação era que os quatro dentes de bebé extra causavam uma confusão de cálcio condensado nas minhas gengivas, o que por sua vez interromperia o crescimento dos meus dentes adultos. Daí veio a necessidade urgente da sua remoção. Meus pais concordaram com uma cirurgia onde meu dentista abrisse minhas gengivas, removesse os extras e eu me tornaria um humano comum. Simples, certo? Errado. Os médicos não disseram o quão invasivo e perigoso seria o procedimento em uma criança pequena. Uma série de complicações imprevistas surgiram no dia da cirurgia; meu dentista ficou doente e o seu aprendiz tomou as rédeas do procedimento; em qual ele acidentalmente entrou em contato com meus dentes adultos, causando atrofia dos dentes permanentes. Foi um mês depois do meu sexto aniversário. Fiz minha primeira cirurgia e minha primeira experiência com complicações cirúrgicas.

Um ano depois, já havia passado por seis cirurgias, todas na tentativa de corrigir a primeira. Era uma névoa de diferentes médicos, dentistas, hospitais e consultórios… No final dessa sequencia, disseram que eu realmente tinha perdido o incisivo central esquerdo. Quando me ofereceram mais uma cirurgia, meus pais procuraram mais umas vezes opiniões diferentes; em que decidiram me colocar aparelho, na esperança de que ele resolvesse o problema de forma menos invasiva.

Uma criança de sete anos com um dente frontal ausente e grandes aparelhos de metal, e posteriormente óculos, eram um combo que atraiu muita atenção indesejada dos meus colegas. As crianças mais velhas ironicamente me apelidaram de “teeth” ou dente em português. E como um incêndio, o apelido se alastrou, e infelizmente foi queimado em mim por mais sete anos inteiros. Aos onze anos, sem que eu soubesse, a minha equipe de basquete carimbou a minha infame etiqueta no meu uniforme, que eu ainda tive que pagar e usar nos jogos. A humilhação ardente tornou insuportável ir aos jogos e, eventualmente, até mesmo à escola.

Aos 14 anos, com a mais nova mudança de dentista veio um implante provisório acoplado com o aparelho, puramente por razões estéticas já que o verdadeiro havia sido completamente perdido pela calcificação. Aos 15 anos, o bullying já não me importava mais, a minha recente mudança de escola ajudou também, mas vivi com o medo constante de um dia o nome me alcançasse aonde quer que eu fosse. Aos 17 anos, eu ainda usava aparelhos mas pelo menos fiz o upgrade do fixo para o móvel.

Ainda sofro com as cicatrizes do meu passado. Mesmo assim, aprendi a viver com elas. Em retrospecto, o aspecto positivo da minha mutação não foi exatamente o próximo grande passo na evolução humana, mas foi o próximo grande passo na minha evolução. O complexo close-up de um mosaico de Picasso foi de fato, apenas um close-up. Tudo o que eu tinha que fazer era dar um passo atrás, olhar para o quadro geral, e ver o quão dolorosamente bonito ele é realmente. Minha evolução foi ser capaz de perceber que essas peças que compõem o quadro maior são perfeitamente normais, e ao mesmo tempo perfeitamente anormais. Embora ainda me esforce para me aceitar, entendo que não posso mudar o meu passado, e acho que não o faria, talvez nunca iria poder me reconhecer sem ele. Não importa seu tamanho, forma e estranheza, esses eventos são parte de algo maior do que eles mesmos, eu; e eles fazem toda a diferença.

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Rafael Regis
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Estudante de cinema na FAAP