“Nos ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos’

Por Isabela Marinho

Isabela Marinho
Iandé
4 min readApr 18, 2018

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Ossadas nas paredes da Capela dos Ossos.

Évora é uma cidade pitoresca do centro-sul de Portugal, no denominado Alentejo. A Igreja de São Francisco, situada na Praça 1º de Maio, abriga a sinistra Capela dos Ossos, decorada por ossos de mais de cinco mil monges. Durante minhas peregrinações recentes pela Europa, passei pela Península Ibérica, especificamente Portugal, um país convidativo que abarca uma gastronomia ímpar, história e paisagens inigualáveis. A fim de explorar as riquezas genuínas nas entranhas do Alentejo, há de se transitar por Évora, capital da região. A cidade mantém viva uma tradição que me convém denominar por “reciclagem histórica”; passados períodos turbulentos impostos pela cronologia de acontecimentos, a capital do Alentejo, como outras cidades na Europa, reciclou ruínas, preservou igrejas e se manteve um patrimônio histórico da Humanidade.

A Igreja de São Francisco data sua construção no século XVII, com estilo gótico-manuelino predominante, tipicamente português. A Capela dos Ossos foi incorporada no lugar do primitivo dormitório dos frades, sendo arquitetada por ossadas provenientes das sepulturas da igreja e do convento, assim como de cemitérios da cidade. A estruturação da capela foi fruto da iniciativa de três monges da Ordem Franciscana que tanto buscavam transmitir a mensagem espiritual quanto à transitoriedade da vida, como pretendiam solucionar o problema de lotação de cadáveres nos 42 cemitérios monásticos da cidade, impedindo o uso estratégico desses espaços.

Igreja de São Francisco, em Évora. Fonte: visitevora.net

Dentre os milhares de ossos utilizados para erguer a capela, estão crânios, tíbias, vértebras e fêmures, dispostos pelas paredes, colunas, teto e piso. A iluminação restrita do local reforça a aparência macabra, sendo originária de três frestas na esquerda; as abóbodas são pintadas com motivos alegóricos à morte. O sentido religioso do espaço é comunicado pelos dizeres “que a capela sirva de consolação a uns e de notícia à curiosidade doutros.” Acompanhada da citação na entrada esculpida em cimento pardo “Nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”.

Entrada da Capela dos Ossos, na Igreja de São Francisco. Fonte: albumdeviagens.com
Iluminação parcial na capela, proveniente das janelas à esquerda.

Já havia lido a respeito da Capela, e me despertou de imediato uma intensa curiosidade, visto que representa nada além de mensagens emergidas na religião e na história de seu contexto. No entanto, a sensação ao adentrar a Capela dos Ossos, por volta do anoitecer em um dia de inverno, é no mínimo tenebrosa; os esqueletos são iluminados de forma parcial, atribuindo aspecto sinistro e sombrio ao espaço. É perceptível que as emoções incitadas individualmente diferem devido às crenças, aos costumes e às experiências singulares de cada um; no entanto, pessoalmente senti um enorme desconforto, a decoração é perturbadora e a energia da capela é carregada, talvez acumulada de todas as pessoas que ali pisaram e sentiram aflição. Por mais que possua um notório significado metafísico a respeito da volubilidade da vida, a morte permanece sendo um tema eternamente pendente, temido pelos humanos em vida, e quando exposto rispidamente em nossa frente, gera incômodo e receio.

Me interesso fortemente por História e religião de séculos antecedentes até os dias atuais; nesse quesito Portugal não deixa a desejar e compõem uma linearidade única para o entendimento da evolução humana no Ocidente. A Capela dos Ossos marca um pensamento do século XVII, convenientemente pouco compatível com a realidade contemporânea, logo seu caráter fatídico e obscuro datam uma existência anterior, que por sua vez engloba valores, crenças e pensamentos que hoje tornam-se conflitantes. De qualquer forma, a experiência requer disposição e vontade do observador, de modo que interprete a mensagem da capela tendo em mente a sua origem arcaica, mas que perdurou no tempo.

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