O copo de pedra

Victor Carvalho Barrio

Victorcbarrio
Iandé
6 min readMay 29, 2020

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A minha experiência estética se dá em torno de algo extremamente simples que, por si só, não representa nada além de um fato cotidiano, mas que conseguiu provocar em mim uma grande reflexão.

O cenário é o da atual pandemia, ficar preso dentro de casa, acesso restrito aos amigos e familiares, paranóias aumentando e sanidade diminuindo, nada que não esteja sendo experimentado pela maior parte da população com um mínimo de consciência. O presente relato não foca nos reflexos negativos causados pela crise mundial na qual nos encontramos, tão pouco visa tecer críticas aqueles que negligenciam os cuidados necessários, mesmo que estes últimos causam em mim tamanha repulsa que poucas páginas não bastariam para descrever a totalidade da experiência, sentimento esse que tem se tornado cada vez mais comum em relação a diversos tópicos. Julguei necessário realizar esse breve desabafo pelo simples fato de que a experiência que passo a relatar busca mostrar um pouco de uma faceta consegui explorar até torná-la positiva.

A realidade da minha quarentena envolve passar a semana sozinho no meu apartamento e como ocupo meu tempo nele. Consciente disto comecei a pensar no que eu poderia fazer para tornar a situação mais confortável. Primeiro, naturalmente, meu foco foi para tarefas a serem realizadas e métodos de matar o tempo, então: trabalhos de faculdade, livros, exercícios, cozinhar etc. qualquer coisa que ao, ao mesmo tempo, consumisse meu tempo e fosse positivo para mim; essa motivação toda durou duas semanas. Seja pela falta de: energia, motivação ou de resultado, a minha ideia inicial foi um desastre, apesar de ter conseguido inserir algumas pequenas coisas como exercícios e leituras na minha rotina a sensação de conforto que eu buscava estava longe de ser atingida.

Após falhar na minha primeira tentativa de me adaptar a essa nova realidade, e com toda a motivação que me restava, eu desisti. Decidi que por uma semana iria, além de fazer o mínimo necessário em relação a aula e outras responsabilidades, agir de acordo com as minhas vontades, logicamente dentro dessa nova realidade limitada. Foi a primeira vez em muito tempo que eu parei para me perguntar o que eu estava com vontade de fazer, não necessariamente para me deixar super animado ou matar o tempo, só o que me deixaria confortável. Eu andei pela minha casa toda, revirei gavetas, vasculhei a geladeira, olhei por todas as janelas e, enfim, acabei na minha varanda com uma jarra d’água e um cigarro, observando a rua e os prédios em volta, neste momento eu me senti mais leve. Naquele momento eu havia encontrado um lugar em que eu me sentia confortável.

Eu automaticamente passei a ficar a maior parte do meu dia na varanda, mesmo para ler algum livro ou fazer algum exercício, e sempre bebendo muita água, em média uns 5 litros por dia. E foi assim, parado na varanda, olhando para o nada e me sentindo em paz, que eu lembrei de um restaurante onde eu fui que servia a bebida em um copo de pedra. O gosto ficava bem mais refrescante mas, eu lembro de pensar na época, nunca faria sentido ter algo assim em casa: eu não ficava tanto tempo em casa, é caro para comprar um jogo com vários copos assim, e eu não seria tão empenhado para sempre ir atrás daquele copo quando estivesse com sede e vários outros motivos, o curioso é que na realidade da quarentena a maioria desses motivos desapareceu totalmente. Foi justamente com esse pensamento em mente que eu entrei no mercado livre e comprei um único copo de pedra, um dos mais baratos, para se juntar a mim durante a quarentena.

Ele chegou bem rápido, dentro de dois dias e de imediato passei a usá-lo quase que ininterruptamente. A água ficava com um sabor mais fresco como eu me lembrava, no geral uma boa experiência. O ponto principal não é o copo em si, mas o fato de que foi enquanto eu o olhava na varanda que eu percebi o que ele representava para mim: um gosto particular. Sem influências externas de outras pessoas ou limitações lógicas, eu havia comprado aquele copo inteiramente movido por um desejo pessoal meu. Tal fato pode parecer trivial mas para alguém como eu, que está sempre levando em conta o ambiente em volta e buscando agir de maneira calculada, ceder a uma vontade própria tão natural foi uma espécie de libertação.

O copo foi a chave para destrancar toda uma cadeia de pensamentos auto reflexivos de modo que, ao observá-lo, primeiro questionei de modo a censurar-me — que desperdício de dinheiro, o copo ainda é feio, quando acabar a quarentena eu não vou usar, o que as pessoas vão achar quando verem isso, foi uma ideia ruim… — mas então, num movimento de introspecção, procurei descartar absolutamente tudo e focar apenas em como eu me sentia em relação aquilo, sem interferências externas ou internas, o único filtro era o meu próprio gosto. Respirei calmamente e tomei mais um gole d’água, sem me concentrar no gosto ou no recipiente, apenas na ação, aproveitando o momento como o ato simples que era. Me deixei conduzir pelo resultado da minha escolha e, quando dei por mim fui tomado por um sentimento, nada como o êxtase das festas ou a alegria de uma paixão, algo muito mais leve e ao mesmo tempo importante, foi uma sensação de pertencimento, sintonia, como se aquele simples ato tivesse permitido que eu voltasse a mim mesmo, mesmo que eu nunca tivesse de fato concluído que estava fora de mim.

Um sentimento acolhedor, como de quando se reencontra um velho amigo do qual se tem muita saudades mas sem tanta intensidade, afinal de contas tal sentimento se manifestou de maneira interna. Percebi que este sentimento era a reação do meu próprio corpo ao seguir uma vontade natural, sem explicação lógica ou planejamento, apenas satisfação pelo resultado pretendido, foi então que comecei a voltar a minha atenção para esse tipo de emoção, ou reação.

Dada as observações que eu havia feito decidi que iria tentar me aprofundar neste sentimento, e é o que tenho feito durante minha quarentena, focado em descobrir o que seriam meus gostos e predileções, mas não em questões grandes e profundas como política e moral onde já possuo os meus próprios e sim em relação a pequenas coisas. A que me colocou no meio de toda essa reflexão foi um simples gosto por água fresca mas, agora, durante a quarentena, já aderi a alguns novos hábito que têm feito com que eu me sinta cada vez melhor e mais conectado comigo mesmo. A título exemplificativo posso citar algumas dessas coisas: meditação; ligar para os meus amigos quando estou com vontade; comer banana da manhã; assistir desenhos etc. todas coisas simples, e até sem relação entre si, o único ponto em comum sou eu. Ao mesmo tempo que descobrir estes pequenos gostos faz com que eu me sinta mais em contato comigo mesmo e mais feliz, ele me fortalece como indivíduo, completando uma parte de mim para a qual nunca dei muita importância e agora vejo sua relevância.

Em um pequeno exercício de reflexão, após toda essa “epifania”, me questionei — como que eu conseguiria explicar isso para mim mesmo se não tivesse tido toda a reflexão originada pelo copo? — e essa pergunta perdurou por algum tempo na minha cabeça, afinal de contas eu demorei anos para chegar até aqui, não é algo que eu sinta que pode ser explicado em poucas palavras. logo, cheguei a conclusão de que eu não conseguiria explicar, mas talvez fosse possível induzir um raciocínio similar, então, para o questionamento auto-imposto, a resposta seria uma outra pergunta — como você pode saber o que é certo e errado se você nem sabe como gosta de tomar água ? — pensando que seria uma pergunta feita entre duas versões de mim, talvez desse certo, talvez não, eu decidi que vou acreditar que daria, não porque faz sentido, mas porque me deixa feliz.

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