O monstro que mora na porta ao lado: o ciclo do abuso durante o isolamento

Isa De Nicola
Iandé
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5 min readJun 1, 2020

(Esta experiência estética é extremamente pessoal, então peço para quaisquer pessoa que leia, caso me encontre em pessoa, por favor não mencioná-la, pois cada parágrafo escrito fora extremamente cansativo e doloroso.

Há também relatos de tentativas de suicídio e abuso animal, então tenha isto em mente caso estes assuntos possam lhe afetar).

No momento que eu estou escrevendo isso, no dia 3 de Maio de 2020, o mundo inteiro está sob quarentena, devido ao alastramento do vírus COVID-19, popularmente conhecido como Corona Vírus, que no momento já causou mais de 200.000 mortes. Devido ao seu alto contágio, a população é obrigada e praticar isolamento em seus lares.

Mesmo se estes não sejam acolhedores nem seguros.

Eu vivo em um destes lares.

Durante toda minha vida, eu vivi junto de meu agressor. Meu irmão biológico mais velho, e especifico a parte do “biológico” devido ao fato de que esta é a única definição de irmão na qual ele se aplica. Ele nunca gostou de mim, nunca me respeitou, nunca me elogiou.

Mas ele sempre me agrediu. A primeira vez foi um soco na minha cara quando eu tinha 4 anos. Eu nunca esqueci.

Quando eu mostrava aos nossos pais o meu corpo cheio de machucados e hematomas, eles apenas me falavam que era normal, que éramos apenas crianças, que meninos batem nos outros mesmo.

E daí ele continuou.

E continuou.

E continuou.

Aos meus 10 anos, ele tentou me jogar na frente de um carro em movimento por eu falar demais. Aos 11, ele tentou me jogar de um ônibus por “ser imprestável”. Aos 13, decidi tentar ignorar ele. Ele então tentou enforcar um dos meus gatos e só parou quando eu comecei a chorar em desespero implorando para ele parar. E ele apenas riu.

Porém, chegou a um ponto no qual somente minha dor não era o suficiente. Ele precisava de mais alguém para usar. E seu alvo foi nossa mãe, vítima da ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica), quem não podia falar nem se mexer sozinha. O alvo perfeito para ele poder manipular.

Houve uma noite em particular, eu tinha 14, ele 16. Meu irmão exigia de minha mãe que ela pagasse para ele ingressos para um jogo de futebol, e ela já havia dito não múltiplas vezes. Ele então se levantou da mesa, foi em minha direção, e prendeu minha cabeça contra a mesa com força. E disse que iria me machucar se ela não comprasse os ingressos para ele.

E ela comprou.

Mais tarde, ele foi no meu quarto, com um sorriso no rosto, me dizer que nossa mãe estava chorando por minha culpa. Por eu ter “manipulado ela ao ponto dela acreditar que ele era uma má pessoa”. E eu acreditei. Toda vez que ele ameaçava alguém e eu protestava, a culpa era toda jogada em mim por “aumentar a situação”.

Para mim, a culpa era minha. Era eu que falava demais, que era o problema. Todos seriam mais felizes se eu não existisse.

Eu tentei me matar várias vezes devido a isso. Nunca com sucesso, claro.

E os anos se passaram. E meu irmão ficou cada vez pior. Nossa mãe morreu, e devido a isso nossa avó veio morar com a gente. Um alvo ainda mais fácil para ele manipular.

Como nós nunca moramos com nosso pai, ele sempre foi ausente, porém também um alvo de nosso irmão, mas completamente diferente.

Ele não ameaçava nosso pai com o meu estado físico; ele ameaçava a saúde do nosso pai diretamente, que tem pressão alta e problemas cardíacos. Ele já foi capaz de hospitalizar nosso pai diversas vezes, uma vez sendo devido a ataque cardíaco. E ele então se utilizava de nossa vó para provar como ele estava arrependido; em sussurros e mentiras, fazendo-a defendê-lo por ele, para ele não ter de justificar nada por si mesmo. O meu único consolo era o fato de que eu não precisava lidar com ele; eu podia sair de casa de manhã e só voltar de noite, e então me trancar no meu quarto e repetir a rotina no dia seguinte.

E funcionou consideravelmente. Pelo menos, até o COVID-19.

Quando a quarentena foi anunciada foi o início dos meus problemas.

Eu perdi acesso ao meu único lugar de segurança — o lado de fora de casa — e agora estava que na obrigação de estar 24 horas no mesmo local que meu agressor.

E ele fez questão de fazer valer a pena.

Desde o primeiro dia, todo dia, sem falhar, meu irmão faz questão de me humilhar, me maltratar. Às vezes só falando crueldades (me chamando de inútil, falando que eu não sirvo pra nada nem em uma situação assim), às vezes com chantagens, e às vezes com ameaças de que iria me expulsar de casa junto de meus gatos e que íamos morrer na rua.

Nesses dias, eu não saio do meu quarto. Apenas para comer e cuidar dos animais, às 6 da manhã, para que ninguém me encontre.

Sinto que meu lar não seja uma área de conforto, nunca foi. Para mim sempre foi uma prisão, uma gaiola bem elaborada.

E, na porta ao lado, o monstro, ouvindo tudo que eu falo no quarto ao lado.

Eu não me sinto bem quando estou perto dele. Se eu ouço a voz dele eu me sinto mal. Se vejo ele, eu tento correr pro outro lado. Eu não consigo sentir nada por ele além de ódio.

E pra toda crueldade dita, toda maldade feita, todo roxo que ele deixa no meu corpo, sempre tem aquele sorriso amarelo. Cruel. Cínico.

Eu não saio do meu quarto, mas mesmo assim sinto o olhar dele em mim. O medo dele estar ouvindo tudo que falo, de estar com aquele sorriso aberto.

Eu vivo em medo. Absoluto medo. Mas não do lado de fora.

Eu passei um bom tempo pensando em como terminar este texto de uma maneira otimista. Eu não queria que terminasse de uma maneira negativa, pois eu sinto que me deixaria pior.

Então se tenho algo para tomar de consolo diante desta dor imensa, é o fato que ainda vivo.

Eu ainda respiro. E pra mim, no momento, isso é tudo que importa.

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Isa De Nicola
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Student at Fundação Armando Álvares Penteado