O mundo é discrepância

Katherine Katritsis
Iandé
Published in
4 min readApr 16, 2018

Ao pensar sobre o que escrever com relação ao significado de uma “experiência estética”, poderia ter escrito sobre as dezenas de viagens já feitas, os incontáveis momentos artísticos, ou até experiências marcantes do cotidiano. Porém, decidi criar uma nova vivência, um novo momento.

Minha avó materna foi uma estilista autodidata incrível, nos bons e antigos tempos do Bom Retiro, em São Paulo. Sendo uma família de imigrantes muito tradicional, ela me ensinou muito do que sei. Passar conhecimentos de geração em geração sempre foi uma grande questão para nós.

Além disso, fui felizarda em ter meu avô paterno como um grande restaurador de antiguidades e esse gosto pela arte passou para meu pai e reverberou em mim.

Desde muito nova, me interessei por trabalhos manuais, desde pinturas em tela e madeira, trabalhos com colagem, bijuterias, mosaico, corte e costura; artesanato em geral.

Mesmo não tendo mais minhas grandes referências artísticas por perto, quis trazer isso pra essa análise de uma importante experiência estética pessoal, por ser uma indispensável parte de minha essência.

Construí minha própria experiência estética a partir de uma pintura que sempre gostei muito, Abaporu, de Tarsila do Amaral. É uma pintura a óleo e uma das principais obras do movimento modernista no Brasil, pintada em 1928. Não me preocupei muito com os impactos da pintura na sociedade, na época, mas sim com como ela se apresenta esteticamente, sua forma, as cores, a composição da obra pelas pinceladas em si.

caixa de contas disponíveis para a releitura da obra

O objetivo seria fazer uma releitura em cima da pintura por meio de uma colagem de contas que eu usava para fazer bijuterias quando pequena. Assim, juntaria uma pintura mais antiga de 28, peças do início dos anos 2000 e uma criatividade de agora.

À disposição havia contas separadas por cor, fio de nylon, fio de corda, barbante e tesoura. Imprimi a pintura, em cores, numa folha de papel A3.

Primeiramente, deixei-me fluir ao tomar como ponto de partida a paleta de cores da pintura original, de Tarsila do Amaral. Na pessoa retratada, usei as contas para dar a ideia de degradê de cores, do transparente ao laranja escuro, usando tons de amarelo e laranja. Tudo isso tentando manter os nuances de cor usados pela pintora. No cacto, continuei usando contas que tivessem tons parecidos, no caso o verde. Usei o verde como o cacto e as contas beges como os espinhos(criados por mim, já que não há sua representação na pintura original). Para representar o sol, usei o vinho, que é uma cor quente e que achei perfeita para representar o calor que ele emite. Usei as pedras azuis triangulares no céu sem um motivo específico, apenas porque achei que ficaria bonito.

releitura da obra, feita por mim

Basicamente, trabalhei as cores e formas das contas para melhor representação da obra em minha releitura.

Durante o trabalho, minha mãe passou pela sala de jantar, onde eu realizava minha releitura, e se interessou. Tive então uma ideia! Disse a ela que fizesse o mesmo: a releitura com a mesma seleção de contas dispostas na caixa, porém ao seu modo.

Curiosamente, ao realizar sua releitura, ela focou mais num conceito da obra, e não nas cores ali dispostas. Segue seu discurso sobre o resultado final:

“Eu quis mostrar a desproporção nessa pintura que é realmente proposital, então eu tentei colocar exatamente no pescoço fininho, uma peça grande, e na perna enorme, uma peça pequenininha. Na cabeça, todos os pensamentos já que a mão encostada assim é a pessoa refletindo e os pensamentos saindo. E depois, todas as coisas ruins saindo por baixo, ruins ou boas, na verdade; as coisas que vão embora da gente. Coloquei uma pulseirinha no braço, com olho grego, pra proteção. No céu há as coisas boas, o céu iluminado com estrelas. O cacto é que nem sempre ele é algo ruim. Ao invés de espinhos, eu coloquei estrelas. No sol há a alegria(pedrinha com um sorriso), mas envolta dele eu coloquei a cor verde, que eu comparei com o cacto, pois o sol também pode trazer algum malefício; nem tudo é sempre bom. As pedras azuis no céu, eu achei que tinha tudo a ver, eu gostei. Todas elas em posições diferentes como é a vida, vai pra várias direções, uma pra cima, outra pra baixo, outra pro lado.”

releitura da obra, feita por minha mãe

Com isso, é mais que claro que a experiência estética é, sobretudo, individual e depende da proposta e do que cada um enxerga do que é dado.

Descobri, com isso, que eu e minha mãe somos muito diferentes. Não que eu já não soubesse disso, mas é como se o espectro de diferenças dos aspectos humanos aumentasse a cada vez que algo desse tipo acontece. Essa experiência estética possibilitou um novo olhar meu perante o mundo e as divergências humanas. Permitiu, além disso, que eu pudesse observar como a arte se porta diferentemente para cada indivíduo.

O fato é que o mundo só é mundo por conta disso. Por conta do incontável número de possibilidades nesse planeta repleto de discrepâncias em todo e qualquer sentido.

o mundo é discrepância

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