O retrato morto

por Carolina C. Egashira

Carolina C. Egashira
Iandé
6 min readMay 12, 2022

--

São Paulo, 11 de maio de 2022.

The Mourners, My Last Family Photo. Annè Olofsson, 1996. The Mint Museum Uptown, Estados Unidos.

Foi ontem que eu ouvi de Vivian, minha analista, que a palavra nasce a partir do encontro faltoso com a realidade. Ao menos é assim que, segundo ela, a psicanálise compreende a pulsão que os seres humanos detêm para com a escrita. A fim de me explicar melhor esse conceito, ela me disse algo do tipo: ''Pense na criança que chora. O choro, instinto do mais primordial, é uma súplica. A súplica do bebê é sinal de que algo falta. Atenção. Afago. Comida. Antes mesmo de entender o porquê, a criança se vê obrigada a aprender a palavra 'mãe', porque, em sua condição de desamparo, o que falta é a mãe. O choro e a palavra indicam a ausência, e ao proferir o termo que se pretende atrair para si, a criança internaliza em si a 'mãe'.''

Fui atravessada por esse saber enquanto nós discutíamos sobre escrita e literatura. Em primeira instância, me emocionei. Sensibilizei-me ao imaginar o tamanho do buraco na alma dessa criança, tão enorme a ponto dela absolutamente precisar aprender algo tão complexo como um código que é a língua, para assim dizer o que falta. A urgência da não-ausência faz com que o processo artificial da fala pareça pífio. Mais do que isso, é como se a ''mãe'' viesse das entranhas desse pequeno ser, e estivesse ali desde o seu primeiro suspiro, pronta para rasgar a garganta.

Ruminando essa conversa, melancólica como sou, não pude deixar de concluir uma simples preposição — que provavelmente não me pertence, já que aparentemente tudo aquilo que eu penso já foi postulado por alguém ou algum(a) intelectual — : todo indivíduo nasce faltoso. Expandimos nosso vocabulário, pois na medida em que crescemos, a realidade fica cada vez mais faltosa — não o mundo, porque o mundo sempre foi faltoso, mas a nossa percepção sobre ele. Quanto mais se conhece sobre o mundo, maior é a vontade de nomear tudo aquilo que existe, o tangível e o intangível, e mais impossível, evidentemente, torna-se essa missão. Somos faltosos do início ao fim.

Em segunda instância, me fez entender um pouco melhor o porquê da escrita ocupar o lugar de ordenamento em minha vida. Escrevo, porque preciso indexar o caos. Sim, sei disso. Sempre digo, inclusive, que as palavras que fluem em meus diários são concretizações de algo que um dia estiveram tão somente pairando em minha mente, flutuando sem quaisquer compromissos com a razão.

Chego, enfim, em Annè Olafsson. Se a escrita é fruto de algo que falta, o mesmo pode ser dito da fotografia. Ela é exatamente o que G.H. de Clarice diz ser: ''…o retrato de um côncavo, de uma falta, de uma ausência.'' De fato o é. Meu dedo clica e captura tudo aquilo que eu quero preservar em meio a entropia do cosmos. Preservo a vida, e a morte. Preservo o que minha mente teima em borrar, um dia, para sempre. Nunca mais terei aquilo que foi dado no momento exato de uma fotografia, não naquelas configurações. Que tristeza, e que beleza! As coisas permutam entre si, colocando-se em constante estado de renovação, para o bem ou para o mal.

Em The Mourners, My Last Family Photo (1996), Olafsson clica uma cena estagiada com familiares, sem saber que essa fotografia, onde ela se põe em uma situação completamente bizarra e autoparódica, seria, igualmente, sua última foto em família.

Descobri esse retrato assombroso em minha visita ao Mint Museum Uptown, localizado na cidade de Charlotte, no estado da Carolina do Norte, Estados Unidos. Estava andando pelas galerias quando fui engolida pelos enlutados da artista. Recordo-me muito bem da meia-luz jogada sobre o quadro, o banco preto no meio da sala e o silêncio sepulcral do ambiente. Éramos em oito. Li a descrição da obra algumas vezes até entrar em termos com o que foi lido. Tudo soava tão absurdo que me vi obrigada a fotografar tal texto para não me esquecer do que a foto de Olafsson representa.

Fotografia em negativo colorido. Fevereiro de 2022.

Lê-se: ''Em uma entrevista de 2015 concedida à Rádio Yale, Olafsson explicou como essa fotografia desenvolveu-se em sua mente, uma vez que ela e a sua mãe são as únicas pessoas da foto ainda vivas. Atualmente, ela enxerga a obra menos como um retrato de família, e mais como algo que documenta o fato dela ser 'a última da linhagem', dado que ela não possui irmãos ou filhos. Apesar de seu intuito original, criar um retrato de família absurdo, Olafsson hoje olha em retrospecto e reconhece que a obra de arte produzida por ela é metade vanitas, metade memento mori, um lembrete de sua própria mortalidade.''

Olafsson tem, hoje, todas essas clarezas, mas em 1996, o que se passava pela sua cabeça? Seja lá o que fosse, me assustou, e me assusta, a ideia de que ela jamais poderia imaginar o tom lúgubre que essa fotografia incorporaria tempos depois. Estamos também suscetíveis a esse fenômeno, a todo momento. Preservo a imagem de alguém querido sem a menor certeza do que ela significará daqui um minuto, que seja. Quero desesperadamente torná-la presente para sempre, domesticá-la e trazer-lá para perto; antecipo a ausência.

O que será que Olafsson sente quando olha para seu o memento mori? Sente vergonha, porque se põe no centro da imagem em condições dissonante de seus familiares? Sente tristeza? Sente falta daqueles que partiram? Deseja voltar para a tarde na qual tirou o retrato? Sente-se enjoada quando percebe que não restará nada dessa longa linhagem quando ela estiver morta? Não acha esquisito o fato de todos, exceto ela, estarem trajando roupas fúnebres, como uma espécie profecia que se revela antes da hora? Não se apavora com a ironia da vida? Bem, provavelmente não. Quem sente tudo isso sou eu. Projeto em Annè Olafsson os meus temores, porque se existe algo faltoso em minha vida, esse algo é o entendimento sobre a morte. Me faltam palavras e imagens para figurar um evento tão taciturno. The Mourners conversa comigo sobre a minha própria mortalidade e a mortalidade de meus entes. Tal é o poder da arte: ela chega perto de figurar o inimaginável.

Por que a obra de Annè Olfasson se tornou indelével para mim, dentre tudo aquilo que eu vi entre galerias e mais galerias? Não tenho respostas prontas, mas de certas coisas sei. Gosto dos semblantes pesados, e como eles destoam com o rosto ternos de dois dos idosos que estão no retrato; me pego imaginando, ''será que eles foram casados? É por isso que aparentam ter temperamentos similares?''. Desejo saber mais sobre essa família, sobre as personalidades que a compunha. Penso como os familiares de Olafsson reagiram à proposta da artista. Penso que deve ter sido uma tarde divertida, curiosa, no mínimo. Quanto tempo foi despendido até que a fotografia final fosse concebida? Uma tentativa, várias?

Imagino meus quatro avós e meus pais ao meu lado em uma fotografia como essa. Desejo, por um instante, ter a mesma sorte de Olafsson. Acho lindo como a arte cristaliza e dá sentido aos nossos atos, nos ajuda a elaborar lutos e compreender a realidade faltosa.

Antes de ir embora, tirei uma fotografia da fotografia, aquele grandessíssimo trocadilho. Quis levar comigo a certeza de que cruzei com algo tão poderoso como o retrato dos Olafssons. Tive medo do esquecimento, de sentir falta e nunca mais me lembrar o nome dessa artista ou dos rostos dessa família. Sigo assim, falando sobre uma linhagem que um dia se esvairá completamente, talvez como a minha.

Fevereiro de 2022. Fotografia em negativo colorido.

--

--