O Trailer Perdido

Ou o fascínio estético de algo inusitado.

Fernando Faria
Iandé
6 min readDec 8, 2020

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Por Fernando Faria

Era certeza: já tinha ouvido aquela música em algum lugar. Tive que descer as escadas e ir até a sala pra investigar. Larguei o que eu estava lendo, acho que era algum tipo de manual qualquer? Não me lembro, já faz anos. Não me julguem, estava de férias no interior, na casa da minha vó, e era uma madrugada de insônia e tédio, ok? Corri para a sala. Eu tenho esse costume de deixar a televisão ligada quando estou sozinho, assim os gatunos acham que tem mais gente em casa, certo? Mas eu demorei. Quando cheguei lá embaixo já tinha acabado, só sabia que tinha passado em alguma propaganda da HBO. Eu tinha que saber que música era aquela, porque gostava muito mas não sabia o nome. Sentei por ali e esperei. Estava passando uma série qualquer. Me submeti àquilo, mas estava perdendo as esperanças. A cada intervalo eu aprumava na cadeira e prestava atenção. Nada. Horas e horas. Eu tinha que descobrir, também porque algo estava no meu pré-consciente, (ou “na ponta da língua”, como dizem), e eu já estava ficando maluco. Mas o que eu queria ver não passava de novo, de jeito nenhum. O programa na televisão estava até curando minha insônia… será que eu tinha imaginado aquilo?

Então apareceu, finalmente. Era o trailer de uma série nova. Hmmm. Um tipo de série de fantasia? Interessante, gosto muito de fantasia. Chamava-se Game of Thrones, talvez já tenham ouvido falar. Catei meu celular. A pessoa que inventou o tal de Shazam merecia ganhar algum prêmio, pois do contrário eu estaria em um manicômio qualquer por aí tentando encontrar a música até hoje. Achava que a voz era do Eddie Vedder, mas estava enganado, entende? A música é Rakim, de uma banda que eu gosto muito, chamada “Dead Can Dance”. A voz é bem parecida, mas o estilo é diferente (new age, vanguarda ou pós-punk… é uma banda difícil de classificar). Aquelas imagens, com aquela música, me fascinaram, por algum motivo. Fiquei vendo aquilo, vidrado.

Eu gosto muito de trailers. Acho que eles são um tipo desmerecido de arte. Sei que é estranho (até porque o trailer é basicamente uma propaganda, coisa que ninguém sai procurando ativamente por aí em sã consciência), mas por vezes eu sinto que eles me provocam um tipo diferente de fascínio estético, que outras mídias não provocam. Após refletir um pouco eu entendi a razão, em parte: eu gosto do mistério. Gosto de preencher as lacunas. Gosto do universo de possibilidades. Convenhamos, é um dos trabalhos de montagem mais trabalhosos e precisos que existem, porque engajar o espectador contando o mínimo possível da história é um processo dificílimo. E eles me inspiram. Esse também é o tipo de reação que quero aprender a provocar, como estudante de cinema. Posso dar aqui alguns exemplos de trailers que ilustram bem o que eu quero dizer, que considero obras de arte por si só, mesmo separadas do filme (pois para apreciar o trailer, pouco importa a qualidade do filme em si, que pode ser bom ou ruim):

O trailer de Sniper Americano:

Sniper Americano (2014)

O trailer de O Iluminado, um caso clássico:

O Iluminado (1980)

O trailer de Bravura Indômita (esse até tem alguns spoilers, mas é incrível mesmo assim):

Bravura Indômita (2010)

Alguns são simplesmente divertidos e inusitados, como o famoso trailer de Psicose, no qual um carismático Alfred Hitchcock passeia pelo set do filme comentando sobre a trama, sem nunca efetivamente mostrar nada do filme em si:

Psicose (1960)

Por isso detesto trailers que contam o filme inteiro, ou quando vejo um filme e acabo pensando “poxa, o trailer era melhor”. Quantas vezes isso aconteceu? A resposta é muitas, o suficiente para que eu não me iluda mais. Por vezes, quando vejo um trailer interessante, até chego a pensar em nunca ver o filme, porque só aquele trailer já me inspirou e funcionou tão bem pra mim… pra que eu vou querer o filme entrando no meio e arruinando tudo?

Tarantino, por exemplo, é um diretor que entende como trailers podem fazer parte de uma experiência estética. Não exatamente pelos trailers dos filmes dele (que são muito bons). Como parte de seu trabalho é inspirado por inúmeros filmes, a montagem acaba contribuindo enormemente para ressignificar a obra, como bom editor que é, e já que sempre está presente na sala de edição, como um papagaio de pirata de sua montadora usual, Sally Menke (até 2010, quando, infelizmente, ela foi encontrada morta em uma trilha). Mais do que isso, a maior prova do valor que Tarantino dá a esse tipo de montagem está em um dos seus projetos menos conhecidos: Grindhouse, de 2007. Não fez muito sucesso, apesar de ser um filme até bacaninha, mas a proposta era interessante: em parceria com Robert Rodriguez, queria passar aos espectadores não somente a experiência do filme em si, mas a de ir ao cinema e assistir dois filmes em sequência (o famoso “double feature”), nesses cinemas decadentes da década de 70 (chamados grindhouse theaters), que passavam filmes trash de terror. Entre os filmes, passavam alguns trailers, que faziam também parte da experiência. Foi justamente o que fizeram; Grindhouse consiste em dois médias-metragens (inclusive com os defeitos de projeção, frames queimados de filme e inserts) com hilários trailers falsos no meio (alguns, inclusive, realmente acabaram virando filmes medíocres depois).

Procurei inúmeras vezes esse trailer de Game of Thrones na internet, sem sucesso. Só passava na HBO da América Latina, e hoje acredito estar perdido, pelo menos no alcance das minhas capacidades. Existem muitos trailers da série disponíveis no Youtube, por exemplo, mas nenhum chega perto daquele trailer mágico que vi. Portanto, tentei recriar um trailer parecido, da série: peguei algumas imagens dela e alguns trailers, e montei o meu. Esse é o resultado, um trailer no qual tento passar a mesma sensação (não sou o melhor editor, ainda estou aprendendo), mas ficou com algumas… idiossincrasias. Não é nenhuma obra-prima, mas acho que resultou em uma colagem interessante. Aos que já viram a série, tentem ver como se fosse o trailer de alguma outra série de fantasia. Aos que não viram, espero que tenha conseguido passar a mesma coisa (porém, como peguei trechos da série inteira pode ser que contenha imagens consideradas spoilers por alguns, mesmo fora de contexto).

Game of Thrones (2011–2019)

Aí vai também o link do trailer pelo Google Drive, caso o YouTube resolva derrubar o vídeo por algum motivo: https://drive.google.com/file/d/1IyzTSpp1jtHWdTcdOO7CC1LRHkE1QcKh/view?usp=sharing

Quanto à série em si? Resumo da ópera: vi a primeira temporada, gostei muito, li os livros (aqui foi a fase de lua de mel), vi as outras temporadas, me decepcionei enormemente com o final, assim como 99,99% da humanidade. Pelo menos posso me consolar com o fato de que, mesmo vivendo em uma época tão polarizada quanto a atual, o ódio à oitava temporada nos une, e isso é até muito bonito, de certa forma. Quando testemunhei essa afronta que foi o final da série, com um roteiro cometido por ineptos que transformaram a história de George R.R. Martin em fanfic da pior qualidade, amaldiçoei o dia em que decidi ver a série e não ter ficado só naquele trailer, perdido para sempre. Mas a verdade é que eu não me importo muito com isso. Já me acostumei com esse tipo de decepção também. Mas ahhhh, o que poderia ter sido… enfim, no momento estou esperando ansiosamente o autor dos livros resolver parar de ficar assistindo futebol americano e concluir a saga. Quem sabe daqui algumas décadas, a HBO, em um possível remake, tente de novo gravar uma série que faça jus aos livros, com um trailer épico para combinar.

Game of Thrones também tem uma das melhores aberturas, outra arte desmerecida.

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