Obra Viva

Por Fernando Ruban

Fernando Ruban
Iandé
3 min readApr 25, 2019

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Not To Be Reproduced — René Magritte

Ele se levanta da cama. Ele pega suas malas e vai para o ônibus com seus amigos. Ele senta no ônibus e escuta um pouco de música. Ele chega ao aeroporto e entra no avião que está repleto de colegas. Ele chega em São Paulo. Ele espera suas malas no terminal, enquanto se despede alegremente de seus amigos que já estão indo embora. Ele entra em seu carro, se deita no banco de trás e conversa com sua família. Ele chega em sua casa e cumprimenta o resto de sua família. Ele sai com eles, fala sobre sua viagem, almoça, volta para sua casa, dá atenção a seu cachorro. Ele olha casualmente para o espelho em seu banheiro. Ele passa o resto do dia em seu quarto. Ele se deita em sua cama.

Ele é eu. Mas eu não sou ele.

Eu não acordo, porque nem dormi, mas mesmo assim me levanto. Eu, com tremendo peso no peito, pego minhas coisas, as quais separei antes porque sabia que não conseguiria fazê-lo na hora. Eu me sento sozinho no ônibus, pois não tenho a coragem de olhar os meus amigos nos olhos. Escuto música em uma tentativa desesperada de afogar meus pensamentos. Eu me sento no avião com as pernas bambas de nervoso, nem consigo ficar em pé. Eu ainda não tenho a coragem de olhar eles na cara. Eu morro um pouco por dentro, com cada tchau seguido de um sorriso falso que dou enquanto espero minhas malas. Eu fico incerto se quero que cheguem logo para sair de lá ou se quero que demorem mais para que eu possa aproveitar o restante de tempo que tenho com eles. Eu entro em meu carro. Eu respondo perguntas da minha família, enquanto deitado imóvel no banco de trás, tentando processar tudo em minha cabeça. Eu chego em casa. Eu respondo mais perguntas, inacabáveis perguntas, de algo em que não quero pensar e ao mesmo tempo não posso deixar de lembrar. Eu mal almoço; eu como uma fração do que eu comeria, pois meu apetite sumiu e cada mordida me dá ânsia de vômito. Eu volto antes para casa, sozinho. Eu caio no chão chorando, enquanto meu cachorro tenta me consolar, mas estou inconsolável. Eu me encaro no espelho de meu banheiro por alguns segundos, mas parecem uma eternidade. Eu sento em meu quarto, me sentindo morto. Eu estou morto. Eu me deito em minha cama, mas não durmo; a minha insônia me imobiliza. Eu estou preso a uma experiência perto o bastante da minha memória para eu lembrar com perfeição, mas longe demais do meu alcance para eu poder vivê-la de novo. Eu, e só eu, vejo isso. Eu estou morto.

Eu não sou ele, mas ele é eu.

Saturn Devouring His Son — Francisco Goya

No espelho ele vê o que ele aparenta ser: vê seus olhos; vê sua boca; vê seu nariz; vê seu corpo. No espelho eu vejo o que eu sou: eu vejo tristeza; eu vejo melancolia; eu vejo dor; eu me vejo.

Ele finge, eu vivo. Ele esconde, eu experiencio. Ele falseia, eu me descubro. Ele se torna humano, eu me torno arte.

Fernando Ruban

3°SEM Cinema CCM

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