Pílulas diárias

Lorena Cavalcante
Iandé
Published in
6 min readMay 3, 2020
Meu apartamento e eu, ambos por Loren Omnia (instagram: @buraco817 @lorenomnia), a artista incrível conseguiu fazer com que eu enxergasse a mim e a meu apartamento do jeito que eu queria que fôssemos

Dia 1

- Recebi um sinal apocalíptico do meu celular. Me acordou com sotaque britânico: London is calling.

- Fiquei deitada o dia todo.

- Percebi que valorizo a ode ao ócio dos gregos.

- O ventilador estava quebrado, não consegui dormir.

Dia 2

- Claramente em mania, lavei as roupas e organizei os discos e livros por ordem alfabética, infelizmente meu fullgás estava arranhado, não fizemos um país. Em compensação, achei 1984 que estava meio acanhado na prateleira e passou despercebido por mim durante muito tempo.

- Tive que quebrar quarentena e sair para comprar a ração dos gatos e um maço de Lucky.

- A rua seguia movimentada.

- Tentei estudar. Falhei.

- Não consegui dormir.

Dia 3

- Dentro de casa fazia um calor absurdo, não consegui me concentrar em nada.

- Fui ao mercado e a rua estava excessivamente barulhenta, o sol forte, o asfalto turvo e todos suavam.

- Os toscos foram se aglomerar na paulista. Tenho dó dessa avenida, finge que é democrática.

- Pensei em montar uma playlist.

- Dormi mal.

- Fumei um maço.

Dia 4

- Assisti um documentário sobre onças pintadas.

- Me empolguei na quarentena e esqueci de beber água e fazer xixi, quando me lembrei já era o quinto dia.

- Notei que meu estilo de vida (quando não faço mania) é apropriado para a quarentena.

- Consegui dormir.

Dia 5

- Sonhei que estava em uma cidade claustrofóbica e prateada, como no filme Metrópolis, quando acordei estava em São Paulo.

- Levantei e me preocupei com a samambaia e com o cacto, pensei que talvez eles não estivessem suficientemente aguados e verdes.

- Tentei estudar. As coisas da faculdade vão ficando pra trás.

- Pensei que deveria ter continuado História, logo abandonei a ideia, isso não conseguiria me deixar feliz.

- Por enquanto tenho que continuar minha maratona de documentários sobre felinos.

- Comecei a pensar sobre mim e me lembrei porque eu não o fazia.

- Fiz a playlist com tema apocalíptico: começando por Torrente, Filipe Catto.

Dia 6

- O governo disse, com a máscara nos olhos, que está preparado para a pandemia.

- 475 pessoas morreram na Itália hoje. Inclusive o pai da minha amiga.

- Fumei dois maços.

Dia 7

- Moro sozinha e acabou todo o vinho.

- Os gatos passaram mal, tive que limpar o vômito deles.

- Assisti Heathers e terminei “antes do baile verde”, queria ver o pôr do sol do cemitério abandonado.

- Descobri uma palavra nova em alemão: Bammelbegierde, atração inexorável por algo que você tenha medo ou ache desagradável. Finalmente uma palavra para aquilo que sustenho.

- Para a playlist: Das lied vom einsamen madchen, Nico. Talvez a playlist seja sobre a minha condição.

Dia 8

- Estou falando com os gatos, o Filipe Abaporu me responde, a Gata não, acho que ela está brava comigo porque pisei no rabo dela.

- Decidi ler Hilda. Péssima ideia. “Tão escuramente caminha à beira-lágrima dentro do meu ser”.

- Acabou o aripiprazol.

- “As favelas serão as grandes vítimas do coronavírus no Brasil”, disse o líder de Paraisópolis.

- Me lembrei como chora.

- Para a playlist: “Eu estou aos prantos”, Letrux.

Dia 9

- Dei continuidade aos documentários, só que não achei sobre felinos, mudei para o mundo animal de modo geral.

- As pessoas não tem responsabilidade social alguma e isso fez com que eu borbulhasse em ódio, até desejei algumas mortes.

- Para a playlist: “Warszawa”, David Bowie.

Dia 10

- Estava ventando e eu não acho que exista uma palavra para descrever a minha condição nos momentos em que o céu está nublado e o vento gelado. Êxtase e melancolia, como se faltasse um pedaço de mim.

- Dormi muito.

- Para a playlist: “Padam Padam”, Edith Piaf.

Dia 11

- Acho que eu sou uma narcisista patológica.

- Cheguei à conclusão que não vai melhorar mais pra frente. Me firmo como covarde. Paralisada, só ladro.

- Muito difícil ter que passar tanto tempo trancada em casa com quem a gente nunca conheceu direito e sempre odiou.

- Para a playlist: Tudo o que você podia ser, Milton Nascimento. Mas poderia ser “Modinha”, Antonio Carlos Jobim.

Dia 12

- Decidi voltar para o Mato Grosso do Sul, ficar com os meus pais. Talvez não seja uma boa escolha.

- Dessa vez o governo fez o pronunciamento mais estúpido possível: O Brasil não pode parar! Facínora, substituindo vidas por um modelo econômico falido, não poderia existir transação mais vil. A desorganização é impressionante.

- Para a playlist: Sodoma e Gomorra, Erasmo Carlos.

Dia 13

- Voltei para o Mato Grosso do Sul, trouxe minha samambaia, o lírio, os gatos e o cacto.

- Fumei menos.

- Para a playlist: “Noite Preta”, Vange Leonel ou “Self Control”, Laura Branigan.

Dia 14

- Estou, mais uma vez, descomedidamente fascinada por uma Drag Queen.

- Os ricos querem que seus empregados trabalhem. Queimemos os ricos.

- Para a playlist: “Venus in furs”, Velvet Underground.

Dia 15

- Era mais divertido ser sozinha cercada por pessoas.

- Fumei só 4 cigarros.

- "Eu já não consigo mais viver dentro de mim e viver assim é quase morrer." — Márcio Greyck.

- Música para playlist: “Gloria”, Pattie Smith.

Dia 16

- Briguei com a minha família. Eles ainda acreditam na capacidade do governo.

- Fumei menos.

- Esta noite o céu estava vermelho e ventava intensamente, um sopro quente, as árvores em frente a minha janela tremiam, só se via a vermelhidão do céu, a opaca lua cheia e o tapetum lucidum da Gata por entre as árvores.

- Talvez o olhar do gato realmente funcione como psicopompo.

- Fiquei com saudades dos meus avós que, com o carregado sotaque pernambucano, contavam histórias de um sertão místico.

- Dormi bem.

- Para a playlist: “Bichos da noite”, Sérgio Ricardo.

Dia 17

- Depois da experiência sacrilégica de ontem a noite tudo está tão chato.

- Fumei só 5 cigarros hoje.

- Briguei com a minha mãe, “o COVID-19 é só uma desculpa pra vagabundo não trabalhar”. Ela nunca teve um emprego em toda sua vida.

- O Rahul quebrou a perna, ele não se parece com o Rahul de “As horas nuas”, mais parece o Plutão do Poe, me encarando pela casa, seu pelo preto camuflado nos cantos escuros,como se escondesse alguma coisa, querendo provar que sabe alguma coisa.

- Consegui fazer alguns trabalhos da faculdade.

- Terminei a Biografia da Sontag. Queria conseguir ser assim.

- Música para playlist: “face to face”, Siouxsie and the Banshees.

Dia 18

- A Salomé teve filhotes, batizamos os gatos de Medéia e Pagu. Virei a louca dos gatos, agora são 7: Salomé, Medéia, Pagu, Gata, Filipe Abaporu, Rahul e Sorrisinho.

- Achei uma caixa com coisas de quando era mais nova.

- Com 6 anos tínhamos que contar o que aconteceu com a Girafa Gina: A girafa Gina estava triste porque o caçador tentou matar ela e ela não tinha amigos um dia foi nadar na lagoa e enroscou o pé e nunca mais saiu.

- Com 15 anos escrevi no canto do caderno: “Pensamento gentil de paz eterna, amiga morte, vem. Depois dizem que todo baiano é alto-astral, Junqueira Freire serve melancolia soteropolitana”.

- Assisti Crepúsculo dos deuses e A malvada.

- Para a playlist: “Blue Velvet”, Lana del Rey.

Dia 19

- Acordei pulando pelas paredes e com um sorriso imenso no rosto.

- O calor é tão intenso, as pessoas de São Paulo não devem imaginar como é quente aqui. As peles brilhantes de suor e o céu absolutamente limpo.

- Porque os famosos e famosinhos insistem em fazer Lives? Essa coisa ridícula me dá raiva.

- Aprendi a fazer falafel.

- O vizinho assoviou uma música maravilhosa o dia todo, enquanto eu tentava descobrir qual era a música.

- Fiquei com saudade do boyzinho.

- Para a playlist: “Dois animais na selva suja da rua”, Erasmo Carlos ou “Mora na filosofia”, Caetano Veloso.

Dia 20

- Não fumei hoje.

- Notei que minha mãe tem os olhos verdes.

- Colhemos mangaba e o pequizeiro está crescendo.

- O cacto deu uma flor.

- Música para playlist: “Lazy calm”, Cocteau Twins.

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