Pílulas diárias
Dia 1
- Recebi um sinal apocalíptico do meu celular. Me acordou com sotaque britânico: London is calling.
- Fiquei deitada o dia todo.
- Percebi que valorizo a ode ao ócio dos gregos.
- O ventilador estava quebrado, não consegui dormir.
Dia 2
- Claramente em mania, lavei as roupas e organizei os discos e livros por ordem alfabética, infelizmente meu fullgás estava arranhado, não fizemos um país. Em compensação, achei 1984 que estava meio acanhado na prateleira e passou despercebido por mim durante muito tempo.
- Tive que quebrar quarentena e sair para comprar a ração dos gatos e um maço de Lucky.
- A rua seguia movimentada.
- Tentei estudar. Falhei.
- Não consegui dormir.
Dia 3
- Dentro de casa fazia um calor absurdo, não consegui me concentrar em nada.
- Fui ao mercado e a rua estava excessivamente barulhenta, o sol forte, o asfalto turvo e todos suavam.
- Os toscos foram se aglomerar na paulista. Tenho dó dessa avenida, finge que é democrática.
- Pensei em montar uma playlist.
- Dormi mal.
- Fumei um maço.
Dia 4
- Assisti um documentário sobre onças pintadas.
- Me empolguei na quarentena e esqueci de beber água e fazer xixi, quando me lembrei já era o quinto dia.
- Notei que meu estilo de vida (quando não faço mania) é apropriado para a quarentena.
- Consegui dormir.
Dia 5
- Sonhei que estava em uma cidade claustrofóbica e prateada, como no filme Metrópolis, quando acordei estava em São Paulo.
- Levantei e me preocupei com a samambaia e com o cacto, pensei que talvez eles não estivessem suficientemente aguados e verdes.
- Tentei estudar. As coisas da faculdade vão ficando pra trás.
- Pensei que deveria ter continuado História, logo abandonei a ideia, isso não conseguiria me deixar feliz.
- Por enquanto tenho que continuar minha maratona de documentários sobre felinos.
- Comecei a pensar sobre mim e me lembrei porque eu não o fazia.
- Fiz a playlist com tema apocalíptico: começando por Torrente, Filipe Catto.
Dia 6
- O governo disse, com a máscara nos olhos, que está preparado para a pandemia.
- 475 pessoas morreram na Itália hoje. Inclusive o pai da minha amiga.
- Fumei dois maços.
Dia 7
- Moro sozinha e acabou todo o vinho.
- Os gatos passaram mal, tive que limpar o vômito deles.
- Assisti Heathers e terminei “antes do baile verde”, queria ver o pôr do sol do cemitério abandonado.
- Descobri uma palavra nova em alemão: Bammelbegierde, atração inexorável por algo que você tenha medo ou ache desagradável. Finalmente uma palavra para aquilo que sustenho.
- Para a playlist: Das lied vom einsamen madchen, Nico. Talvez a playlist seja sobre a minha condição.
Dia 8
- Estou falando com os gatos, o Filipe Abaporu me responde, a Gata não, acho que ela está brava comigo porque pisei no rabo dela.
- Decidi ler Hilda. Péssima ideia. “Tão escuramente caminha à beira-lágrima dentro do meu ser”.
- Acabou o aripiprazol.
- “As favelas serão as grandes vítimas do coronavírus no Brasil”, disse o líder de Paraisópolis.
- Me lembrei como chora.
- Para a playlist: “Eu estou aos prantos”, Letrux.
Dia 9
- Dei continuidade aos documentários, só que não achei sobre felinos, mudei para o mundo animal de modo geral.
- As pessoas não tem responsabilidade social alguma e isso fez com que eu borbulhasse em ódio, até desejei algumas mortes.
- Para a playlist: “Warszawa”, David Bowie.
Dia 10
- Estava ventando e eu não acho que exista uma palavra para descrever a minha condição nos momentos em que o céu está nublado e o vento gelado. Êxtase e melancolia, como se faltasse um pedaço de mim.
- Dormi muito.
- Para a playlist: “Padam Padam”, Edith Piaf.
Dia 11
- Acho que eu sou uma narcisista patológica.
- Cheguei à conclusão que não vai melhorar mais pra frente. Me firmo como covarde. Paralisada, só ladro.
- Muito difícil ter que passar tanto tempo trancada em casa com quem a gente nunca conheceu direito e sempre odiou.
- Para a playlist: Tudo o que você podia ser, Milton Nascimento. Mas poderia ser “Modinha”, Antonio Carlos Jobim.
Dia 12
- Decidi voltar para o Mato Grosso do Sul, ficar com os meus pais. Talvez não seja uma boa escolha.
- Dessa vez o governo fez o pronunciamento mais estúpido possível: O Brasil não pode parar! Facínora, substituindo vidas por um modelo econômico falido, não poderia existir transação mais vil. A desorganização é impressionante.
- Para a playlist: Sodoma e Gomorra, Erasmo Carlos.
Dia 13
- Voltei para o Mato Grosso do Sul, trouxe minha samambaia, o lírio, os gatos e o cacto.
- Fumei menos.
- Para a playlist: “Noite Preta”, Vange Leonel ou “Self Control”, Laura Branigan.
Dia 14
- Estou, mais uma vez, descomedidamente fascinada por uma Drag Queen.
- Os ricos querem que seus empregados trabalhem. Queimemos os ricos.
- Para a playlist: “Venus in furs”, Velvet Underground.
Dia 15
- Era mais divertido ser sozinha cercada por pessoas.
- Fumei só 4 cigarros.
- "Eu já não consigo mais viver dentro de mim e viver assim é quase morrer." — Márcio Greyck.
- Música para playlist: “Gloria”, Pattie Smith.
Dia 16
- Briguei com a minha família. Eles ainda acreditam na capacidade do governo.
- Fumei menos.
- Esta noite o céu estava vermelho e ventava intensamente, um sopro quente, as árvores em frente a minha janela tremiam, só se via a vermelhidão do céu, a opaca lua cheia e o tapetum lucidum da Gata por entre as árvores.
- Talvez o olhar do gato realmente funcione como psicopompo.
- Fiquei com saudades dos meus avós que, com o carregado sotaque pernambucano, contavam histórias de um sertão místico.
- Dormi bem.
- Para a playlist: “Bichos da noite”, Sérgio Ricardo.
Dia 17
- Depois da experiência sacrilégica de ontem a noite tudo está tão chato.
- Fumei só 5 cigarros hoje.
- Briguei com a minha mãe, “o COVID-19 é só uma desculpa pra vagabundo não trabalhar”. Ela nunca teve um emprego em toda sua vida.
- O Rahul quebrou a perna, ele não se parece com o Rahul de “As horas nuas”, mais parece o Plutão do Poe, me encarando pela casa, seu pelo preto camuflado nos cantos escuros,como se escondesse alguma coisa, querendo provar que sabe alguma coisa.
- Consegui fazer alguns trabalhos da faculdade.
- Terminei a Biografia da Sontag. Queria conseguir ser assim.
- Música para playlist: “face to face”, Siouxsie and the Banshees.
Dia 18
- A Salomé teve filhotes, batizamos os gatos de Medéia e Pagu. Virei a louca dos gatos, agora são 7: Salomé, Medéia, Pagu, Gata, Filipe Abaporu, Rahul e Sorrisinho.
- Achei uma caixa com coisas de quando era mais nova.
- Com 6 anos tínhamos que contar o que aconteceu com a Girafa Gina: A girafa Gina estava triste porque o caçador tentou matar ela e ela não tinha amigos um dia foi nadar na lagoa e enroscou o pé e nunca mais saiu.
- Com 15 anos escrevi no canto do caderno: “Pensamento gentil de paz eterna, amiga morte, vem. Depois dizem que todo baiano é alto-astral, Junqueira Freire serve melancolia soteropolitana”.
- Assisti Crepúsculo dos deuses e A malvada.
- Para a playlist: “Blue Velvet”, Lana del Rey.
Dia 19
- Acordei pulando pelas paredes e com um sorriso imenso no rosto.
- O calor é tão intenso, as pessoas de São Paulo não devem imaginar como é quente aqui. As peles brilhantes de suor e o céu absolutamente limpo.
- Porque os famosos e famosinhos insistem em fazer Lives? Essa coisa ridícula me dá raiva.
- Aprendi a fazer falafel.
- O vizinho assoviou uma música maravilhosa o dia todo, enquanto eu tentava descobrir qual era a música.
- Fiquei com saudade do boyzinho.
- Para a playlist: “Dois animais na selva suja da rua”, Erasmo Carlos ou “Mora na filosofia”, Caetano Veloso.
Dia 20
- Não fumei hoje.
- Notei que minha mãe tem os olhos verdes.
- Colhemos mangaba e o pequizeiro está crescendo.
- O cacto deu uma flor.
- Música para playlist: “Lazy calm”, Cocteau Twins.