Posição Fetal

Sofia Lopes do Nascimento Pereira

sofialopes
Iandé
5 min readMay 25, 2020

--

Se um ano atrás tivessem me falado que eu teria que ficar em casa, praticamente sem sair, sem ver a luz do sol, longe de pessoas, impedida de ter que andar em meio à aglomerações, sem ter que enfrentar a obrigação diária de interagir pessoalmente com alguém além da minha mãe, e que todo o tempo livre que eu tenho poderia ser dedicado à uma atividade, afazer ou entretenimento que deve ser realizado dentro dos limites da minha residência e só… Eu confesso: eu teria ficado tão feliz.

Queridos leitores, acontece que ano passado, por volta deste mesmo período, no inesquecível ano de 2019, eu estava me recuperando do pior quadro depressivo que já enfrentei, sendo contextualizado no ano anterior, no caso 2018 — não que eu esteja 100% não-depressiva nos dias atuais — quem sofre com depressão sabe que todo dia de vida é sentir como se uma batalha eterna entre sua alma, seu corpo e cérebro estivesse sempre acontecendo dentro de si, a qual você só apanha e faz com que você tenha o desejo recorrente de voltar para o útero, onde tudo era pacífico e seguro.

Título: Pregnant lady artwork — Artista: Chloe Wright

Eu queria poder dizer que existem dias em que as coisas são mais fáceis, em que a gente vence a batalha e tudo fica bem. Como também que ocorre o contrário: outros dias em que a gente perde mas se recupera e tudo também fica bem, independente da derrota. Porém, a verdade que eu tenho hoje para compartilhar com todos vocês é a seguinte: sempre é e sempre vai ser foda, não só sentir essa batalha dentro si, como também se dar a chance de passar por ela, de se forçar a abrir os olhos todos os dias e se colocar a enfrentá-la mesmo tendo a absoluta ciência de quão dolorosa ela é, sabendo também que ela decide se você vai ser capaz de viver o dia que tem pela frente ou não.

O ano de 2018 foi o que eu desisti de enfrentar essa batalha. Por toda a minha vida depressiva anterior eu fui extremamente funcional, independente de como eu me sentia, eu me obrigava a cumprir com todas as minhas responsabilidades e obrigações escolares, familiares, de amizade ou qualquer coisa como eventos ou trabalhos em que eu estivesse envolvida. Eu funcionei até não funcionar mais. Teve um momento em que eu não conseguia mais. Eu não aguentava. É como se eu tivesse ficado sem espaços dentro de mim para guardar todos aqueles sentimentos que eu não queria lidar. E eu implodi.

Não conseguindo mais forçar a minha participação no mundo, eu fugi dele. Eu não me via funcionando na totalidade das coisas, e muito menos inserida em nenhum dos núcleos que a minha idade exigia, como: faculdade, emprego e relacionamentos. Eu me senti tão errada, uma aberração, enquanto eu via que todos os meus amigos pareciam capazes, assim como todas as pessoas mais velhas presentes na minha vida também foram em sua juventude. Aliás, a transição da adolescência para a vida adulta acontece para todos que são condenados a viver até ela, não é mesmo? Terrível.

Dois mil e dezoito (escrito por extenso) então foi o meu período de isolamento da sociedade pré-quarentena. A diferença é que era uma escolha. Uma escolha triste, mas ainda uma escolha. Foi um período difícil, em que hoje se manifesta na minha memória como um borrão composto por flashes de diversos momentos não-felizes: entre dias em que passei deitada na cama direto e outros em que tomei coragem para sentar e desenhar (e sim, eu tenho muitos desenhos dessa época e de qualidade deplorável, mas que carregam em si certa dignidade no sentimento de desespero que retratam, o qual pode ser facilmente interpretado no contexto apresentado).

Chorando, encarando o ventilador de teto, questionando a minha existência e valor, comendo para preencher o vazio existencial da minha alma, tudo sempre foi acompanhado por aquela angústia que mora no peito depressivo, aquela que nunca vai embora, que te prende na cama como um imã e parece atrair toda a pressão da existência do universo, levando-a à ser exercida sobre você, te tornando refém daquela posição fetal novamente, mas destruindo toda a pacificidade e conforto que o corpo poderia sentir, substituindo as sensações boas dessa experiência pelo desespero e a dor física de estar preso e parado.

Título: Baby in womb — Artista: Chloe Wright

Desse modo, posso apresentar a minha conclusão a todos vocês: conseguir levantar da cama todos os dias, é como nascer todos os dias. A experiência é traumatizante de uma forma diferente, mas ela também é uma vitória. Se fazer forte o bastante para conseguir levantar e aceitar enfrentar a batalha diária que você sabe que te espera, já outra vitória por si só. Todo dia que eu levanto, eu venço. Eu posso querer voltar, mas não voltar consta como outra vitória. Hoje eu sei que eu sou forte por conquistar essas primeiras vitórias. E tudo na minha vida que mudou depois de 2018, foi inicialmente por conta delas, e assim por conta de mim.

Eu não lamento que esse ano tenha acontecido. Por um lado fico feliz em saber que a minha pior inimiga sou eu mesma, isso significa que eu não tenho que correr atrás de ninguém (sinceramente, a única corrida que eu venci foi a dos espermatozoides para o óvulo, e até hoje eu não tenho certeza como isso aconteceu) ou ter nenhuma luta física real com alguém (a qual eu provavelmente perderia). A minha batalha interna me levou para a revelação mais marcante e libertadora desse período: eu ainda não sei o que eu estou fazendo, mas eu aprendi que ninguém sabe.

Eu tenho um lugar, assim como todo mundo, porque tudo o que seguimos, cada regra, norma, valor, sociedade, grupo, modo de pensar e viver é produto da invenção humana, resultado da nossa necessidade de se organizar a existência que não compreendemos, sendo uma clara manifestação do desespero universal que existe dentro de todos nós: a eterna busca pelo sentido da vida, e por conseguinte, de nós mesmos como indivíduos dotados de alma e função. E dessa forma, continuaremos a viver entre crises existenciais, transtornos mentais e entorpecentes enquanto sobrevivemos em meio a esse sistema louco que criamos, até encontrarmos o que procuramos, e quem sabe atingir algum nível de alívio.

Discorrendo um pouco sobre a humanidade, consigo estabelecer o ponto de que a minha experiência relatada, por mais pessoal que seja para mim, pode não ser tão diferente das vivências de outras pessoas. Todos nós compartilhamos dessa necessidade primária de busca pelo sentido, e nos momentos em que nos perdemos nessa jornada nos tornamos reféns da falta de resposta e acabamos por cair em desespero. A forma que encontrei de lidar com essa eterna trajetória é saber que devemos nos agarrar no conhecimento que temos: estamos vivos, e algumas batalhas podemos ganhar. Vamos levantar das camas e então venceremos.

Breve descrição da artista responsável pelos desenhos:

Chloe Wright: “I’m a 23-year-old self-taught artist born and raised in Worcester, UK. I personally like to paint surrealistic art but take commissions for portraits and other styles.”

Link para o site que disponibiliza o trabalho de Chloe Wright:

--

--