Sumiço

Bianca Valéria M Vizzotto
Iandé
Published in
5 min readApr 25, 2019

Era uma vez uma casa. Um apartamento, na verdade. Era uma vez um lar. Um ambiente formado por memórias. Repleto de lembranças e apegos. Lembranças pertencentes a ali e que só poderiam existir naquele lugar. Ao mesmo tempo que tal lugar só poderia ser do jeito que é por causa do que presenciou. Era uma vez um local que nunca mais será o mesmo.

Não, eu não vou me mudar. Pelo menos, não definitivamente. A partir de semana que vem, minha casa entrará em reforma. Ela será grande, de 6 meses. Nesse meio tempo, ficarei em um pequeno apartamento do outro lado da rua. Meus pais vêm falando de fazer reforma já faz uns 8 anos. Só que nunca ia para frente. Nessa dança de vai-não-vai, eu passei a acreditar sinceramente que nunca fosse acontecer. Ou que talvez o fosse apenas quando eu saísse de casa e vagasse o meu quarto. No entanto, aconteceu. Vamos reformar. Vamos nos “mudar”.

Uma questão que vale mencionar é que nem moramos aqui há tanto tempo. Nos mudamos no final de 2003, alguns anos antes do meu irmão nascer. Era justamente por isso que trocamos de casa: para ter mais espaço para o Bebê. “Bebê” com B maiúsculo, porque por muitos anos ele só foi uma sombra à espreita, não alguém real. Vivíamos no apartamento que meu pai morava desde os 20 anos. Todas as minhas mais antigas lembranças são de lá. Era uma boa casa. Ficava na mesma rua da minha atual, número 1230. Agora moro no 1229. Pois é. Nos mudamos para o outro lado da rua. E sim. É lá que vamos ficar enquanto o 1229 estiver reformando.

Acontece que estou meio confusa e não sei nem por quê. Não, sei sim. Porque estou achando tudo muito esquisito, muito fora da realidade. Não que essa situação seja algum tipo de tragédia; as pessoas mudam de casa o tempo todo. Além de que nem vou de verdade. Mas estou achando um tanto triste. Durante as últimas semanas, tenho visto as minhas coisas desaparecendo aos poucos. Primeiro os DVDs. Depois os livros. De repente, os móveis, e, de uma hora para outra, o meu mundo se esvaziou, sobrando apenas caixas e pacotes completamente lacrados, com coisas que provavelmente só voltarei a ver em outubro. Aos poucos, a minha vida desapareceu diante dos meus olhos. Se tudo der certo, sairemos daqui semana que vem.

A questão é que eu sou muito apegada às minhas coisas e ao meu passado. Em realidade, sou apegada a qualquer passado de qualquer pessoa — não é à toa que sempre fui tão apaixonada por história. Também sou extremamente melancólica. Tenho muita dificuldade em me desfazer de qualquer coisinha (a minha avó também era — e se tornou uma acumuladora). Sempre fui assim. Lembro o quanto chorei quando era pequena e me mudei para cá. Eu tinha certeza que nunca poderia gostar daqui, amava a minha casinha. Não estou tão afetada desta vez (na verdade, estou menos do que eu mesma esperaria de mim), mas ainda estou em um estado de melancolia constante, um certo medo de como serão os próximos meses e, principalmente, de como vou me sentir depois de ver a casa transformada. Não é uma simples “re-decoração”. Paredes serão derrubadas e outras serão erguidas. Nunca pensei que o meu lugarzinho ficaria tão irreconhecível. Enquanto me angustio por causa disso, estarei vivendo no lugar que outrora sofri tanto para abandonar. Que ironia.

Entretanto, por mais que minha sala, cozinha e quarto estejam diferentes quando voltar, a casa em si ainda será a mesma. Afinal, será o mesmo prédio, a mesma estrutura, os mesmos vizinhos e as mesmas pessoas que habitarão comigo. O lar, em essência, ainda será o mesmo. Para falar da minha casa, isso é algo bom. Para alguém saudosista, como eu, isso é algo maravilhoso. Mas essa questão de “muda, mas não muda” ou de “muda a aparência, mas não muda a essência” também pode ser algo aterrorizador. Porque é assim que eu me sinto em relação à vida em geral.

Quando era criança, pensava que, quando crescesse, me sentiria uma pessoa diferente. Pensei que me sentiria madura, adulta, confiante. Acho que todas as crianças pensam isso, e acredito que, se não todas, a maioria delas se decepciona. Para mim, foi (e é) assim. Eu cresci; isso sem dúvida. Minha aparência se transformou, e isso é indiscutível. Aprendi coisas novas e vivi novas experiências. Por que, então, sinto que nada de fato mudou? Será que um dia as coisas ainda vão se modificar? Ainda me sinto uma menina de 5 anos no corpo de uma de 19. Com quase 20 já não deveria me sentir, pelo menos um pouquinho, diferente? Já não deveria ter feito mais coisas e ser mais madura? Me sinto tão pequena.

Acima de tudo, sinto que tudo ao meu redor se transforma e, sempre receosa do que virá em seguida, me sinto impotente. Assim como os móveis da minha casa vão sumindo, as coisas ao meu redor vão se transformando e não posso fazer nada a respeito, apenas observar e aceitar. Em realidade, o que eu tenho é medo do tempo. Ele passa muito rápido e, por mais que tente agarrá-lo e prendê-lo, parece que escorre por entre os dedos e, logo depois, se transforma em ar e voa para longe. Tenho medo de novidades, do futuro. Mas tenho mais medo é da velocidade em que ele corre. Tudo que queria é que ele passasse mais devagar. Desejo me agarrar a algo e me manter segura por mais alguns instantes, antes que ele me leve embora. Talvez seja por isso que estou tão abatida com toda a questão da reforma. Afinal, eu sei que a casa ficará mais bonita. Também sei que várias modificações virão como bênçãos, e que, a partir do momento que ela estiver pronta, servirá de palco para novas memórias. Ainda assim, me deprime pensar que ela nunca mais será a mesma e que tudo que ela costumava ser apenas ficará nas lembranças de quem nela conviveu. São os paradoxos relacionados à “mudança”: por mais que eu a queira, me prendo ao passado, e quando algo na minha vida se transforma, entro em um estado de nostalgia. O paradoxo também vem pelo aspecto de que sim, estou eternamente mudando e não percebo. Sinto que sou ainda aquela menininha, mas estou enganada. Talvez, no final das contas, eu seja incapaz de definir quem sou. O simples ato de darmos continuidade ao processo de fazer a reforma já é um sucesso para a sequência de modificações que o meu apartamento está passando. Talvez seja a minha vez de dar início à minha própria transformação, ao meu progresso individual.

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