To be “hooked to the silver screen”
Ou como o entretenimento pode salvar o mundo
Este sou eu- Marcos- em um dos melhores dias da minha vida, a comemoração dos meus 19 anos no começo de fevereiro deste ano. A despeito dos momentos incríveis proporcionados por aquela festa, o COVID-19 veio de maneira implacável, obscurecendo o melhor que 2020 tem a oferecer. Para ser sincero eu já não estava com expectativas altas, janeiro não tinha sido um bom mês para mim, fiquei preso no processo de alistamento militar. Na semana da festa, eu estava deprimido com a ideia de ser obrigado a seguir ordens, de ser forçado a mudar completamente a minha rotina, de submeter-me à bárbara educação militar. Para mim seria como lutar contra tudo que eu acredito, não parava de pensar nos piores cenários possíveis.
Por muito tempo eu fiquei imaginando o ódio que eu sentiria todos os dias e como eu lidaria com aquela situação, com muita rebeldia e insolência. Meu avô era militar e minha mãe me contou em algumas ocasiões sobre algumas experiências ruins dentro do quartel, minha reação óbvia foi de completo horror. Todavia, ela me aconselhou a aceitar a submissão, caso eu fosse selecionado e não quisesse “sofrer na mão deles”. Ela disse ainda que cultivar esse sentimento horrível era um desperdício de tempo e de energia. Logo concluí que estava sendo dramático, desde então muito mudou e eu entendi de verdade o que ela quis dizer. Com a festa, eu verdadeiramente escapei daquela realidade e, no fim, fiz minhas pazes com um ano que já tirara o bastante de mim. Tudo isso graças a uma escolha musical feita por mim, a qual tornou-se um símbolo do meu amadurecimento. É como se o meu artista favorito me presenteasse com um sentimento novo, de ser um verdadeiro rockstar.
LIFE ON MARS?
A quarta faixa do quarto álbum de estúdio de David Bowie- Hunky Dory (1971)- foi a música que eu escolhi para tocar na minha entrada (como pode ser visto no vídeo no início da página). Eu não planejei nada e tenho a impressão que tudo ocorreu de maneira espontânea, com o envolvimento de todos presentes. A soma do épico musical de Bowie com os gritos dos meus amigos e familiares me fez sentir como a pessoa mais importante do mundo, esse foi o presente do artista especialmente para mim. Meu corpo estava arrepiado e as palavras, que eu decorei na semana anterior, saíram espontaneamente, como se eu tivesse por alguns minutos me transformado em David Bowie. Portanto, a música se tornou um símbolo novo e complexo na minha vida.
David Bowie é, como eu, um contador de histórias, então, antes de entendermos o que ela se tornou, é importante observar a letra da música. Bowie canta a história de uma garotinha a qual quer ir ao cinema, seus pais discutem sobre isso, como o fazem constantemente, e quando é permitida a sua ida, ela percebe a força que o filme tem sobre ela. Por um momento, os realizadores a tiram daquela difícil realidade, entretanto com o tempo ela percebe as claras semelhanças entre os filmes e, consequentemente, esses se tornam chatos. O resto da música é uma avaliação sobre a produção cultural, por meio de referências a mídias bem diferentes: aos desenhos animados “That Mickey Mouse has grown up a cow” e à música “‘Cause Lennon’s on sale again”. Bowie parece estar avaliando a sua própria produção e tem receio de estar no mesmo ostracismo destes filmes medíocres.
Sailors fighting in the dance hall
Oh man, look at those cavemen go
It’s the freakiest show
Take a look at the lawman
Beating up the wrong guy
Oh man, wonder if he’ll ever know
He’s in the best selling show
Is there life on Mars?
A música começa com um delicado piano, para mostrar a parte da menina, gradualmente são adicionados novos instrumentos. Nesse momento, a voz começa como elemento destacado, aos poucos os instrumentos parecem começar a disputar com a voz até o clímax do refrão. Os instrumentos e a voz entram em harmonia e o tom épico é introduzido, como um filme de aventura. Quanto à letra, Bowie introduz alguns dos clichés do cinema e questiona se os personagens desses filmes têm consciência de que fazem parte algo muito maior que eles, uma narrativa ficcional. A seguir, Bowie aproxima de uma pergunta feita por todos nós durante a vida: “Is there life on Mars?”. A partir dela podemos especular ainda mais sobre a mensagem da música, ele parece estar plantando perguntas existencialistas em nossas mentes, sobre a nossa insignificância diante do universo. Estaríamos nos refugiando na arte para evitarmos o confronto com os questionamentos sobre a nossa própria existência?
Não sei quando escutei esta música pela primeira vez, entretanto eu sei quando eu comecei a gostar dela de verdade. Quando eu assisti o videoclipe, eu comecei a escutar mais frequentemente, mesmo que não com a atenção que merecia. Na semana anterior à festa, eu decorei-a para fazer lip-sync na festa, já que eu não sei cantar, e acho que essa é uma das melhores maneiras de refletir sobre uma música. Antes a música era apenas uma das músicas do David Bowie que eu não escutava tanto e, assim como com Goodbye Yellow Brick Road do Elton John, eu demorei muito para dar o seu devido valor. Para mim, Life on Mars? é a mistura perfeita entre o espetáculo e o lirismo do mais altíssimo nível, é uma das melhores músicas já escritas. Portanto, o contexto que eu a inseri apenas enriqueceu minha percepção sobre ela e sobre a minha vida naquele momento.
A partir deste ponto de virada, eu estava disposto a aceitar o que o destino trouxesse a mim, não queria mais viver em auto-piedade. Uma semana depois da festa, como uma recompensa do destino, fui liberado do serviço militar e as lições que eu aprendi não foram esquecias. Não queria lidar mais com os meus problemas do mesmo jeito, reprimir sentimentos como o ódio não me fazia bem. Com a volta das aulas na faculdade, decidi encarar os meus problemas sem perder tempo reclamando ou criticando, mas sim procurando soluções efetivas. Creio que essa mudança na minha vida teve um efeito interessante, até que um dos maiores problemas que já enfrentei na vida surgiu, o COVID-19.
O ISOLAMENTO SOCIAL
Viver preso em casa colocou em xeque todas as lições que aprendi, passei os primeiros dias reclamando como aquilo prejudicaria a minha vida. De maneira semelhante ao processo seleção do serviço militar, a quarentena evidenciou o meu maior defeito, o egocentrismo. Parece que todas as vezes que eu enfrento um problema a minha preocupação é como esse vai me afetar. Admito que minhas reclamações não mudaram muito desde então, porém já me acostumei com as condições e minhas preocupações evoluíram, meus pais fazem parte do grupo de risco e estou enfrentando novos desafios.
Há semanas eu ando maratonando séries, perdendo tempo jogando no celular, demorando horas para produzir alguma coisa ou ler algo. Resumindo, não consigo parar de pensar em como não estou sendo produtivo na quarentena. Sei que não sou o único que se sente assim, imagino que todo mundo sente a tentação de procrastinar diante destes infinitos estímulos diferentes. A despeito dessas tentações, eu não posso deixar de fazer as minhas tarefas e de fazê-las bem. Life on Mars? faz-me lembrar daquelas perguntas existencialistas feitas por David Bowie, qual é o meu propósito na vida?
A música cita diretamente a profissão que decidi exercer, a de cineasta. Lembrar-me disso serve de motivação, então quando o trabalho é sobre o cinema minha produtividade é muito maior. Imagino que faça sentido, considerando que “ninguém escolhe fazer cinema com a intenção de ganhar dinheiro”, como alguns dos meus professores afirmam. Sou feliz produzindo e, assim como David Bowie, tenho medo da mediocridade, não gosto de sentir que não dei meu máximo em algo que produzi. Afinal, é por meio do cinema que eu conseguirei transmitir a paixão que eu tenho por essa linguagem, como uma metalinguagem. Assim como com a menina da música, o cinema faz parte da minha vida desde quando eu era uma criança assistindo aos filmes de aventura, por isso tenho esperança de que algum dia alguém verá algo produzido por mime também se apaixone. Entretenimento não é só um refúgio, é também um lugar que permite a existência dos sonhadores, sem a censura de uma sociedade individualista, incapaz de resolver os conflitos internos.
Principalmente diante desta quarentena, creio que, portanto, ao invés de apenas tentarmos fugir da realidade deveríamos, inicialmente, enfrentar este momento difícil dentro das nossas individualidades. Entendo muito bem das dificuldades, falhei diversas vezes. Todavia, a resolução desses conflitos internos é muito importante, caso queiramos o fim do isolamento e, mais do que isso, assistir os necessitados. Como poderíamos alcançar tais objetivos se desrespeitamos a quarentena e as pessoas ao nosso redor por sair de casa sem a máscara? É muito frustrante pensar que muitas pessoas são como eu, egoístas, e que poucas entendem, de fato, a música Life on Mars? do David Bowie. Pelo menos estou mudando e, portanto, mais próximo de compreender.