Todo dia um dia

Nicholas Francisco
Iandé
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8 min readMay 29, 2020
Filipe Vidro, Nicholas Francisco, 2020–4608 x 2592 pixels

E como você tem se sentido?

Bem, bem. Recentemente. A umas semanas atrás eu tive mal, algumas crises de ansiedade, uma inaptidão de fazer qualquer coisa sabe? Sei lá, parecia aqueles desenhos animados, quando tem uma nuvem negra em cima da cabeça. Graças a Deus isso já passou, mas de uma maneira geral, obviamente, eu não estou bem.

Ninguém ? Acho que essa é a coisa, comparado aos outros eu estou indo bem, mas a verdade é que o novo bem do momento não é bem, é mal, mas ainda sim, é um estado melhor do que o mal mal.

A incerteza de tudo me incomoda extremamente. Até quando isto vai durar? Eu vou aguentar? O que eu perdi com tudo isso? Claro, todos estão desse jeito, faz parte do que está acontecendo, “é a vida”… dói, ainda sim.

Eu tenho sentido muita falta — saudade, também, na verdade — do acaso. A rotina do dia a dia tinha muito isso, não? Os dias eram menos previsíveis. Aqueles pequenos momentos indo pra faculdade, ou num corredor, na sala antes de uma aula, sentado na praça… óbvio que estes momentos nos ajudavam a se distrair do cotidiano, agora com tudo num só lugar, fica bem mais complicado. Sinto muita falta dos papos furados, comentários esdrúxulos, momentos esquecíveis…

É uma saudade estranha essa do acaso… nem sempre era positivo. E independe disso, porque o importante dele era a sua realidade e pureza. Me machuca emocionalmente não poder viver sobre o “risco” dele. Deu pra entender?

Mas é… tenho estado bem sim.

Hoje O Céu Está Tão Lindo IV, Nicholas Francisco, 2020–4608 x 2592 pixels

Seus interesses têm te trazido alegria? Não sinto que os meus tenham.

Eu entendo. Não tenho tido muito tempo pros interesses, mas pra ser sincero, mesmo quando tenho, não diria que eles têm sido a minha principal fonte de felicidade.

Me sinto instável. Sinto que a qualquer momento isso pode voltar. Eu digo, esses dias em que eu não vejo motivo ou propósito em nada. Parece que qualquer coisinha me jogará nesta condição de novo.

Tenho um medo de quando o semestre acabar… eu temo que a falta de uma rotina, seja ela de fazer trabalhos, provas, ou ir nas aulas de EAD, me direcione a entrar neste estado quase depressivo.

Tudo bem que eu já passei férias assim várias vezes, mas dessa vez é diferente. Eu sinto que é, pelo menos.

Óbvio que você deve pensar “ué, crie uma rotina para as férias, planeje-se, curse algo, ou crie algo”, e sim, tenho feito e pensado sobre isso. Só que… sei lá… ainda tenho esse pavor.

Sem Título, Autor desconhecido, Digital [Meme], 2020–1114 x 627 pixels

Não sei… e esse é o problema , o ‘não-saber’. Quem sabe até o contrário ocorra. Vai ver que, agora que todos os aspectos da vida vieram pro lar, faculdade, relações e afins tenha me exaustado completamente. Não há mais uma diferença entre ambientes e, mentalmente, isso está me destruindo, mas não consigo perceber.

Vai ver eu estou a semanas de um esplendor individual, ou um ápice emocional.

A festa das festas.

Tomara, ?

Capa do álbum “Tim Maia 1970” e “Soul Culture: 01 — Straight Ahead — Definitive Funk Fusion”

Você lembra que comentou, a muito tempo atrás, que nos momentos difíceis a música sempre te ajudava, não a sair desse estado, mas a te segurar para que você possa se recompor. Como tem sido o papel da música atualmente para você?

Eu não diria que está me ajudando tanto, mas venho consumindo bastante sim.

É… engraçado, um pouco antes de toda essa situação do vírus se instalar, eu criei junto a dois amigos um grupo de WhatsApp para compartilhamento de músicas, de qualquer gênero, duração ou época. A única regra — que nem sempre é seguida, mas não que precisasse — era, como dizia no nome do grupo, “Todo dia uma música”.

Tenho me aventurado por tipos diferenciados de música, artistas de outras nacionalidades e culturas…

Na verdade, estou planejando algo pra quando esse final de semestre acabar. Assim que encerrar todos meus deveres com a faculdade, vou me deitar e passar um dia inteiro ouvindo uma playlist que estou montando justamente pra este momento. Sempre fiz isso no final de semanas de provas na escola, dedicava o dia após o término do ano só ouvindo música e fazendo absolutamente nada… Não que eu já não faça isso ? hahahahaha… mas essa “sessão” é especial…

Também comecei a mexer com um software de produção musical. Conecto meu teclado e crio umas melodias, experimento alguns instrumentos… não saiu nada substancialmente musicalístico, mas sei lá, dá uma enorme sensação de criatividade, gosto de gastar horas, mesmo que no final eu clique em fechar e no botão “descartar alterações”.

Tenho ouvido bastante Tim Maia e Erasmo Carlos… sabia que eles dois e o Roberto Carlos tiveram uma banda?! Eu imagino que seja algo de conhecimento comum pra quem viveu na época, ou é estudado, mas nossa, eu fiquei surpreso. Eles se chamavam “The Sputniks”, baseado no satélite mesmo, que tinha lançado no mesmo ano. O Erasmo Carlos inclusive tem uma música — que é excelente por sinal — sobre essa época em que todos estavam no começo de suas carreiras, chama “Turma da Tijuca”, recomendo muito.

Enfim, eu tava falando do grupo do WhatsApp… depois de um tempo, ficou impraticável a troca de músicas ser diária, chega uma hora que as músicas acabam … mas ainda sim, participar do grupo, enviando e recebendo músicas, meio que simula essas trocas comunicacionais rápidas que a principio parecem insignificantes. Um gostinho destes perdidos pequenos momentos…

Cheguei a conclusão, indiretamente, que essa experiência com tal grupo me ajudou a levar um dia por vez sabe? Me fez realizar que o hoje pode ter sido chato, entendiante ou triste… mas o amanhã? O amanhã vai ser outro momento, outro humor, outra música, outra melodia, outra sintonia.

Outro dia.

Quer saber, retiro o que eu disse… a música tem sido uma boa companheira sim.

Hoje O Céu Está Tão Lindo III, Nicholas Francisco, 2020–4608 x 2592 pixels

Você comentou que seus interesses não têm sido sua principal fonte de felicidade. O que tem?

Existe uma certa obviedade, mas ainda sim me surpreende — positivamente, claro — que tal fonte seja dos momentos em que entro em chamadas de vídeos com amigos e amigas.

Teve dias, inclusive na semana em que eu estava no meu ponto mais baixo, onde eu sentia tanto desinteresse por tudo, que até um convite pra tais chamadas era irrelevante e não me provocava qualquer animação. Mas ao ingressar, era — e ainda é — realmente mágico como, naqueles poucos minutos, ou em alguns casos, longas e boas horas, eu abstraia de tudo de maneira quase esclarecedora.

Marcela, Zaza, Flávia e Nicole; 2020

É possível que nem se fale ou discuta algo interessante, mas só o bate-papo já muda tudo no dia. As risadas com bobagens, os comentários inúteis e ressalvas estúpidas, sabe? Nossa, eu aprecio tanto essas coisas…

Com certeza eu tive meus melhores momentos da quarentena ali, sem dúvida. E na realidade, todas as conversas foram importantes, cada uma teve seu valor nos diferentes jeitos que me proporcionaram felicidade.

Tem muito haver com o que eu tava falando do acaso, essas calls são o que mais se assemelham a isso. Sinto que eu tenho ficado um pouco dependente delas, alguns dias sem e eu já noto um grande vazio. Ao mesmo tempo que eu sei que isso é negativo, porque de certa forma consome bastante de mim se eu não tenho essas chamadas, e chega a quase ser necessário para minha sanidade, é realmente ruim sentir falta disso? De conviver com os outros e… conversar?

Hoje O Céu Está Tão Lindo II, Nicholas Francisco, 2020–1877 x 3158 pixels

Eu tenho me planejado para diversas coisas depois do final do terceiro semestre, e com certeza, mesmo cada uma sendo algo totalmente diferente — de fazer um RPG online até ler Tolstói — todas se igualam, pois me proporcionam um propósito.

A incerteza que toda a situação da quarentena traz é algo que assusta, e somado a essa falta de “ter o que fazer”, vira um pesar psicológico. Mas não adianta focar nas mazelas da situação. Claro, falar é fácil, e não é sempre prático ignorar questões que afetam seu social, financeiro e sua saúde.

Muitas coisas estão fora do nosso controle, e o estado atual da sociedade só deixa isso mais evidente, não ajuda nada estar preso em mundo pós-moderno, somatizando em um desespero que não parece ter solução.

Eu passei por momentos difíceis — meus momentos, com dificuldades que podem não ser as piores como muita gente pelo mundo vêm passando, mas obscuros ainda sim — como boa parte de todos nós, mencionei aqui os momentos ruins, mas fiz questão de ressaltar os que trazem felicidade também. Não há somente adversidades, lembre-se, tudo vai mudar.

Saudades, Ary Diesendruck, 2020–1259 x 575 pixels

É estranho pensar como o Coronavírus vai marcar nossas vidas e a história para sempre, tudo ocorreu muito rápido, e perdemos coisas que faziam parte do nosso dia a dia, que faziam parte de nós.

Nem tudo se foi para sempre. Nós podemos e iremos, como já estamos, nos adaptando. O “Nicholas” que estava pessimista nas transcrições acima mudou. Se ele mudou, você também pode.

Não pense que “estamos no fim de tudo e este é só o começo”.

Estamos em reajuste, e este é o começo.

E vai adaptar.

E vai estabilizar.

E vai passar.

Para finalizar, deixo aqui meu enorme agradecimento a todos que participaram de chamadas comigo, seja para fazer um trabalho da faculdade, conversar sobre TikTok’s ou falar com quase zero propriedade sobre o futuro da política brasileira.

Não importando o tema,

vocês ajudaram a recuperar o acaso da vida,

meu muito obrigado, a todos vocês.

Me despeço ouvindo a música Primavera do Tim Maia.

Sem Título, Autor desconhecido, Digital [Meme], 2020–750 x 494 pixels

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