Uma fuga para o Canadá

Ana Carolina Marques
Iandé
Published in
6 min readMay 3, 2020

Na minha família por parte de mãe existe uma tradição — não oficial — de que todos os netos da minha avó fazem intercâmbio no ensino médio. Começou com minha prima mais velha, Manuela, e foi até a última neta antes de mim, Renata. Acompanhei minhas primas indo e vindo, escutei suas histórias que pareciam sair de filmes americanos. Esperei, ansiosamente, pela minha vez, era o meu maior sonho. Mas ela nunca chegou. Ou melhor, não chegou como eu imaginei.

O meu primeiro ano do ensino médio foi difícil, não consegui me adaptar a escola nova que cobrava muito mais dos alunos do que minha antiga, e acabei repetindo de ano. Isso foi a desculpa perfeita para minha mãe dizer que eu nunca faria intercâmbio — minha prima Fernanda também repetiu de ano e mesmo assim fez sua viagem, mas nesse momento ela não quis me comparar a uma das minha primas, como sempre faz. A verdade, é que minha mãe é super preocupada, do tipo de que se eu não atender uma ligação ela começa a chorar. Por isso tinha medo de que eu viajasse sozinha para outro país. Desisti do meu sonho, guardei ele dentro de uma caixa na minha mente e a deixei bem no fundo dela, tentei esquecer as histórias das minhas primas e minha vontade de viver meu próprio High School Musical.

Porém, no meu segundo ano de ensino médio uma oportunidade surgiu. Um intercâmbio no Canadá. Não era o sonho do ensino médio estadunidense, não eram seis meses morando na casa de desconhecidos, e sozinha em outro país. Era um mês, um curso em uma escola de inglês e junto com mais 15 brasileiros e um guia. Não era o meu sonho perfeito, mas era tudo que um menina de 17 anos, que se sentia cada vez presa nas garras na mãe extremamente protetora precisava. Não foi fácil, pesquisei tudo sozinha, precisei de muito apoio das minhas tias, mas consegui. E em agosto de 2016 meu sonho mais antigo se realizou.

Vancouver era movimentada, brilhante, nova e cheia de vida. Às vezes ensolarada e às vezes nublada. Os moradores a chamam de raincouver, mas pouco choveu enquanto estava lá e nenhuma chuva forte. Talvez seja porque Vancouver quis ser legal com os novos exploradores, ou talvez por causa da estação do ano. Gosto de pensar que foi a primeira.

Era difícil não conhecer ninguém. Sempre fui muito tímida, fazer novas amizades nunca veio fácil. Mas quando estamos em lugares novos, cercados de desconhecidos, a vontade de criar conexões, mesmo que passageiras, torna-se cada vez mais forte. Fiz umas amizades no grupo de brasileiros, mas a maioria deles eram bem diferentes de mim. Fiz algumas amizades na minha sala do curso de inglês. Lembro de uma menina russa, um menino francês e uma menina chinesa que consegui criar laços que não duraram, porém me recordo com muito carinho até hoje.

Fiz muitas passeios, treinei muito o meu inglês — finalmente os longos anos de curso de inglês foram postos em práticas — criei memórias que me mudaram, algumas que morro de vergonha. Mas quem não morre de vergonha ao pensar em coisas que faziam no ensino médio?

Lembro de andar de SkyTrain todos os dias para ir para a escola de inglês, lembro de como fiquei com aquela voz do metrô anunciando as estações por semanas na minha cabeça quando voltei para o Brasil. E quando a voz começou a sumir, eu as repetia como um mantra na cabeça, jurava que nunca as iria perder. Entretando, se me perguntasse hoje qual estação eu embarcava e qual desembarcava, não iria lembrar de jeito nenhum. Algumas memórias se perdem com o tempo, mas elas deixam alguns traços para trás, mesmo que imperfeitos. Ainda me lembro de vários momentos que vivi naqueles vagões agitados: de uma mãe com o filho que puxou assunto com a gente e contou a história de vida dela, lembro de olhar pelas pequenas janelas do trem e sentir que poderia ver Vancouver inteira de lá. Nunca vou esquecer que tinha um prédio lindo no caminho e gostava de me imaginar morando em um dos seus apartamentos.

Depois das aulas e nos finais de semana, fazíamos passeios pela cidade e cidades próximas. Exploramos tantos cantos de Vancouver, que embaralhei muito deles na minha cabeça e não sei mais identificar que lugares eram. Pelo menos, lembro de muitos pequenos pedaços, das risadas, e de me sentir incluída no meu grupo, mesmo sendo tão diferentes de mim. Das boas conversas, dos dois caras belgas e dois turcos que sempre andavam com a gente, e no final, até entraram para o nosso grupo do Whatsapp. Lembro de sentir frio tão rápido quanto sentia calor, e de procurar Wi-Fi por todo o canto para postar fotos no Snapchat. Foi nessa viagem que fiz duas tatuagens de renda, uma delas um tigre, gostei tanto que ano passado tatuei de verdade um tigre no mesmo local.

Agora só me resta essas lembranças e a saudade. A saudade do chocolate quente do Tim Hortons, da vista do SkyTrain, dos sorvetes, cafés e mapple syrup, dos desenhos de alce em todo o lugar, de uma cidade que parecia tão cheia de oportunidades e vidas e eu queria, mais do tudo, ser mais uma daquelas pessoas que vivendo ali.

A Ana Carolina que entrou no avião para o Canadá, não é a mesma que voltou. Ela se virou sem os pais pela primeira vez, enfrentou a própria timidez para não se sentir sozinha, fez memórias vergonhosas que não se arrepende, e se sentiu livre. Voltou para o Brasil com aquele gostinho de liberdade na boca que nunca pode esquecer. No meio do ano seguinte se mudou para o Rio de Janeiro e começou a faculdade, mas o Rio era muito próximo da casa dos seus país em Macaé, RJ. Em 2019 resolveu ir para São Paulo, e era exatamente o que ela precisava.

Meus pais gostam de falar que eu estou sempre fugindo, e talvez seja culpa dessa viagem de 2016, acredito que ela me deu toda a coragem que precisava para ir sempre mais longe. E fugir não é uma coisa ruim, quero sempre fugir e sempre conhecer todas as versões da Ana Carolina que possam um dia existir em cada cantinho que eu passar. No final do dia sei que sempre terei uma casa para voltar, seja ela a dos meus pais ou as casas que colecionei ao longo do caminho.

Por Ana Carolina Marques

TURMA 3CTM20201

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