Uma palavra sobre Anton Tchekhov

Por Rebeca Gebrin

Rebeca Gebrin
Iandé
5 min readNov 13, 2020

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“Aquilo que provamos quando estamos apaixonados talvez seja o nosso estado normal. O amor mostra ao homem como é que ele deveria ser sempre”.

Essa crítica se refere à Jardim das Cerejeiras— última peça escrita por Tchekhov— encenada pela primeira vez em 17 de janeiro de 1904 no Teatro de Arte de Moscou.

Clara Carvalho e Brian Penido Ross — Fotografia de Ronaldo Gutierrez — Grupo Tapa — Veja São Paulo

Antes de tudo, preciso dizer que a literatura russa mexe comigo. Sua profundidade é algo que dificilmente encontro em outras vertentes. Honestamente conheço mais alguns livros de Dostoiévski e Tolstói, mas devo admitir que Tchekhov também me marcou como um dos grandes. Por isso esta peça me chamou atenção e decidi escrever sobre. Faziam alguns meses que não aparecia por aqui.

Para falar da época, foi uma virada de século importante que precedeu a grande revolução e repercutiu reflexos até os dias de hoje. Essa metade do século XIX estava num período nebuloso da Rússia, com uma série de movimentos revolucionários, a libertação dos servos, e essas mobilizações que pretendiam fulminar a monarquia absolutista dos Romanov. Pode-se dizer que foi exatamente em 1905 um ensaio da revolução e posteriormente em 1907.

Tchekhov não chegou a presenciar nenhuma delas visto que morreu em 1904, mas estava inserido nesse ambiente de preparação. Além de que, ele mesmo não teve participação política nenhuma, uma vez que alegava-se ser “apolítico”. Porém, mesmo com essa premissa, sua obra transpira essa ambiência, tanto da libertação dos servos quanto do assassinato do czar Alexander II, que era bastante liberal. Sendo assim, Tchekhov conseguiu trabalhar as questões sociais e políticas que estavam fervilhando na época através do texto.

Wallyson Mota, Pedro Haddad, Carla Kinzo, Carolina Fabri, Marina Vieira e Léo Stefanini — Fotografia por Fernando Bergamini — Veja São Paulo

Isto acontece uma vez que ele articula as personagens sendo de vários estratos sociais, tais como servos, latifundiários, aristocratas, membros pensantes da sociedade, algo próximo a intelectuais (cujo, ouso dizer, que era a classe na qual ele mais se identificava) etc. E na dramaturgia ele também faz jus ao título de ícone na literatura mundial. Stanislavski, muito conhecido pelo pessoal que faz teatro, mas também por ser fundador do teatro de arte de Moscou, viu nos textos de Tchekhov uma grandeza e uma inovação que até então não tinha na dramaturgia russa.

Não obstante, nessa peça, Jardim das Cerejeiras, ele traz alguns estados de alma, uma atmosfera mística onde há falas que “nada dizem, mas tudo dizem”, umas pausas muito profundas e reflexivas que devem ser colocadas à mesa. Mesmo tendo um rastro de outras peças, essa (na minha opinião) é mais acabada, sua obra-prima na dramaturgia.

Todos os elementos trabalhados por ele no texto, que possuem uma diferença clara em comparação com outras que possuem diálogos mais longos, ficam muito bem marcados e são refinados com extrema maestria. E uma das coisas que mais me chamam a atenção nos escritos do autor, e que consequentemente também estão inseridos nesta peça, é a questão da rotina, das cenas comuns, de comer e beber, das discussões sobre a vida, que vem acompanhadas de devaneios e divagações sobre as questões do mundo metafísico, as grandes reuniões que duram horas a fio, as festas, e etc.

Sendo assim, ele captava nesse cotidiano mais banal, a riqueza, ou melhor, a fraqueza da natureza humana. E o mais engraçado é que Tchekhov não julgava seus personagens, podemos dizer aqui que todos são postos como anti-heróis, são embotados e tratados com certo carinho pelo autor, não existe o bem e o mal, e no Jardim da Cerejeiras isto é expresso nitidamente.

Clara Carvalho e Sérgio Mastropasqua — Fotografia Ronaldo Gutierrez — Grupo tapa — Veja São Paulo

Pensando no primeiro trecho da peça, pego aqui o primeiro quarto de toda a apresentação, chamo-o de “chegada”. Ela é a que inicia essa belíssima arquitetura orgânica que concentra-se na venda do jardim que na verdade é um símbolo de contemplação, algo a ser majestoso, mesmo que com afeto pessoal da família. Essa aristocracia rural, dona de um grande latifúndio, sede desse jardim que produzia cerejas, mas que significava uma vida inteira, um passado de uma Rússia agrária e aristocrática que ruía (em 1904).

Isto é comprovado por uma fala dos personagens que diz “esse jardim é a Rússia inteira”. E que mais para frente será comprado por uma burguesia ascendente, por um ex-servo, que iria lotear e rentabilizar aquele vasto terreno (construir casas pequenas) que era feito para contemplação (uso aqui um termo quase com entonação lírica).

Ou seja, por mais que a peça inclua momentos engraçados e diálogos simples e curtos, o autor deixa subliminarmente essa discussão do contexto russo, toda essa mudança no território natal que está em plena metamorfose. A ideia de que o jardim será hipotecado já é um símbolo claro dessa aristocracia decadente. E não somente isto, o debate sobre servidão também é uma linha tênue que Tchekhov constrói sem fazer muito alarde nas linhas explícitas da peça.

Em outras palavras, ele reproduz as questões complexas da psicologia humana, da incompatibilidade humana, do amor (narrado na peça entre o futuro dono do jardim e a filha adotiva de Liubov que não se completa — cena do relógio onde o rapaz é tomado por súbito silêncio por não conseguir se abrir com a moça e ao ficar só deságua em lágrimas), da política e das questões sociais através do humor. E é um contraste tão sutil e leve que o torna digno da honra que carrega.

NOTA DO IANDÉ: Rebeca Gebrin foi aluna de Estética no primero semestre do ano pandêmico de 2020. E, naquele semestre, postou sua “Experiência Estética”, como trabalho da disciplina. Rebeca acaba de inaugurar uma nova possibilidade para o Iandé: que ex-alunes continuem compartilhando aqui seus espantos e sua aisthesis. Bem-vinda de volta Rebeca! ❤

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Rebeca Gebrin
Iandé

Nascida em 2001, em São Paulo, sou estudante de Publicidade, Direito e Marketing. Apaixonada por Psicologia e crítica de obras oriundas da alma humana.