Allana Dilene
Ideia Transitiva
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6 min readOct 25, 2015

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A morte do autor e a liberdade da interpretação

Foi na sala de estar, com um candelabro, e foi o senhor Mostarda!

Há algum tempo, no início idílico do meu doutorado (tantas esperanças, tanto tempo à frente), escrevi um pequeno pedaço de ficção, que segue abaixo, sabendo muito bem que esse não era o sentido no qual Roland Barthes usou a expressão que encabeça esse texto — a morte do autor. A pedidos, tentarei fazer um texto explicando um pouco esse conceito, que eu tomava por garantido mas, aparentemente, não é.

– E então, o que fazemos agora?

Katiane olhou para aqueles ao seu redor. Nem em um milhão de anos teria pensado em uma reunião tão bizarra — e ela que achava que a sua história era bizarra, inconsciente e sem sentido. Na sua frente, a mulher de cabelos castanhos, óculos quadrados e roupas de pelo menos cinco anos jazia inconsciente. Estava completamente à mercê deles.

– Peraí, a gente não vai dar uma de Frankenstein, né? — perguntou uma outra, que afastava o cigarro fumegante com um braço metálico. Vinha de uma história de ficção científica cyberpunk, e tinha um nome que parecia uma onomatopéia. — Aquela besteira toda de se voltar contra o criador e tudo o mais?

– Frankenstein não era o monstro, era o cientista — corrigiu Katiane, impaciente. — Não me pergunte como eu sei disso, ok? Só fui escrita assim.

– Apesar de eu adorar o tropo literário criatura contra criador, — uma voz suave levantou-se, e uma moça loira, jovem e muito bela saiu das sombras. Nas mãos, ela trazia uma pequena harpa, e no rosto, estava armada de um sorriso plácido. — eu não acredito que esse deveria ser nosso caminho. Alguém nessa assembleia se perguntou o que aconteceria conosco se ela perecesse? Afinal, somos criações dela, e só existimos aqui, não?

Um momento de silêncio, enquanto a moça se sentava, triunfante. Mais seres, entre outras mulheres, ora usando armaduras de metal, alguns poucos homens, e outras criaturas que pareciam ter saído de algum compêndio bizarro se aglomeravam. Como cabia tanta gente na cabeça daquela mulher?

– Eu acho que a gente faz “puf”, né? Tipo, desaparece, zé-fi-ni?

– Seria c’est fini — uma outra moça, de formas arredondadas, apareceu do nada. Ela guardava uma semelhança assustadora com a mulher adormecida, embora tivesse uma aparência catunesca. — Eu aprendi umas palavras em francês, e pareço legal, mas sou revisora. Ei, não me olhem assim, vocês realmente achavam que ela não tinha uma espécie de auto-representação na cabeça dela? Quem vocês acham que organiza essa bagunça toda aqui? Fantasmas invisíveis?
– Ei, senti uma pontada de preconceito contra nós, seres incorpóreos. Temos nosso espaço aqui também!

E a algazarra começou. Problemas começaram a ser comparados — o tempo em inatividade de cada um, esquecidos naquele multiverso variado e sempre inacabado; os péssimos textos escritos, ou aqueles que tinham ainda seu valor; os que foram reescritos e revisados se colocando acima dos outros, abandonados ainda em forma de rascunho. Os ânimos se exaltavam, a algazarra aumentava e antes que se alguém tentasse argumentar, uma horda de personagens fictícios marcharam em direção à mulher que dormia um sono leve.

Pararam diante dela, incertos. Valeria a pena? E o que aconteceria com eles? Estar em um limbo de personagens não escritos seria um destino melhor do que uma espécie de pós-vida de ficções perdidas?

Não seria dessa vez que descobririam.

É óbvio para qualquer pessoa que alguém escreve um texto. Há uma pessoa rabiscando papéis, apertando teclas e tentando impor algum sentido às palavras que aparecem na tela. Mas uma outra pessoa ainda mais importante que eu, Umberto Eco, declarou que não tem o menor interesse em um fato tão trivial quanto a pessoa que escreveu um texto. Desenvolvamos.

Escrever um texto, registrá-lo e publicá-lo torna aquele conteúdo propriedade intelectual de alguém. Há legislação sobre isso. A reprodução indevida, de trechos ou da totalidade da obra sem que os direitos autorais sejam pagos tem suas penalidades previstas em lei (que se aplicadas, certamente arruinariam os quiosques de fotocópias de universidades, e dificultariam imensamente o acesso a livros esgotados e não-digitalizados, mas isso é pauta para outra discussão). E, se esse conteúdo pertence a alguém, é direito dessa pessoa revisitar esse material, fazer “reboots” ou qualquer coisa dessa natureza. A história é sua, você faz o que você quiser. Inclusive matar personagens queridos por toda uma massa de audiência.

Uma vez que esse material é publicado e lido, porém, ele deixa de pertencer a um autor. Não patrimonialmente, mas intelectualmente. O ato da leitura é o que completa o texto — o autor depende do leitor para que o seu propósito seja atingido, afinal. Que adianta ter conteúdo produzido se ninguém lê?

(O questionamento acima poderia minar meu próprio ato de escrever, mas sou persistente e sei que alguém tão trivial quanto eu mesma vai tropeçar nisso aqui um dia e vai ler, nem que seja eu, apenas para passar vergonha)

Aí entra a proverbial morte do autor. O Autor, assim, com maiúsculo, aquela instância criativa genial, única responsável pela concepção de uma obra, o Deus de qualquer romance, manipulador das pobres vidas ficcionais, está morto. Essa instituição, que de acordo com Barthes teria surgido pelos idos do Renascimento/Iluminismo, que detém todo o poder sobre a obra e deve ter sua vida pessoal vasculhada para oferecer bases interpretativas para o seu texto, perdeu sua credibilidade. É necessário se ater ao texto e a justificar suas interpretações com base no texto. A pessoa do autor é tão leitora quanto eu mesma. Ela tem a sua visão da obra, eu tenho a minha, e elas podem ser abissalmente diferentes.

Essa visão “endeusada” do autor, em geral, exclui outros elementos do processo de produção de qualquer conteúdo: aprendemos a escrever lendo; aprende-se a falar ouvindo. Nossos discursos não são nossos, não são propriedades. Um texto escrito por mim é um produto de tudo o que eu li, ouvi, experimentei, discordei, debati. Um texto não é produto meu, mas sim de toda uma história textual que me precedeu. E esse é o ponto: o texto só se completa quando lido e interpretado por alguém.

Manter-se apenas ao texto, porém, não vai oferecer todas as respostas — não que haja uma quantidade certa de respostas, ou mesmo as respostas corretas em relação a um texto. Ignorar os contextos de produção e recepção poderá tornar a leitura pobre, e como aconteceu com alguns estudiosos e críticos, poderá tentar reduzir um texto a uma equação matemática que não vai, nem de longe, contemplar todos os aspectos culturais de determinada obra. E não é disso que estamos falando aqui.

O que espero ter conseguido esclarecer é que o autor não é, necessariamente, uma pessoa privilegiada para falar do seu texto. Ele pode afirmar suas intenções, fazer declarações e esperar que os receptores compreendam seu texto, mas a leitura passa por outras subjetividades. Outras pessoas, em diferentes contextos, com diversas experiências de vida, farão obviamente interpretações distintas. E isso não é ruim — pelo contrário! Isso enriquece e adiciona camadas de signficado ao texto, e deve ser levado em conta, pois é relevante no eterno processo de construção de textos.

Claro, pessoas poderão dizer coisas absurdas e desconexas, e cabe a nós, também leitores, separar as interpretações fundamentadas e as que não forem. E construir diferentes subjetividades e conhecimentos assim, em eterno diálogo.

Outros textos sobre o assunto:

Literatura moderna e morte do autor — Pantagruelista

Marcos Antonio de Sousa Alves — A questão do autor em Barthes e Foucault

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Allana Dilene
Ideia Transitiva

Mulher da altura de uma espada larga, leitora ávida, aspirante a muitas coisas.