HQ e Literatura — Próximos, mas diferentes (parte 1 de 2)

Fernanda Eggers
Ideia Transitiva
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4 min readSep 28, 2015

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No dia 27 de setembro, participei de uma mesa-redonda com o tema Quadrinhos: literatura ou artes visuais? na Funesc, com John Monteiro e Marcelo Soares, a convite de Thaïs Gualberto. Foi um momento de debate do lugar das Histórias em Quadrinho na produção cultural local e nacional, assim como seu papel na educação, formação de conceitos e como arte.

A seguir, vocês lerão o material que preparei para esse dia, dividido em duas partes. Falo das intersecções e diferenças entre essas duas formas de arte e produção de conteúdo, assim como pontes entre outras formas de comunicação.

“Não fazemos uma foto apenas com uma câmera; ao ato de fotografar trazemos todos os livros que lemos, os filmes que vimos, a música que ouvimos, as pessoas que amamos.” (Ansel Adams)

A frase é de um famoso fotógrafo de paisagem, mas poderia ser aplicada a praticamente qualquer produção cultural. Seja uma foto, um conto, um desenho ou mesmo uma narrativa oral, nada é criado do zero. Quando nos damos ao trabalho de criar algo, utilizamos referências daquilo que gostamos e daquilo que é parecido com o que queremos criar.

Às vezes, essas referências nem são tão óbvias ou conscientes. Somos bombardeados por outras criações culturais desde muito cedo. Seja o jeito do pai ou da mãe de contar uma história ou cantar pra gente dormir. Seja os desenhos animados que adorávamos, o joguinho que enfiamos na mão das crianças para elas ficarem quietas, tudo isso passa a fazer parte do nosso repertório e com isso, construímos a forma que nos expressamos.

Portanto, é muito normal e até esperado que uma forma de arte ou produto cultural se inspire ou busque elementos em outro. A própria fotografia partiu da linguagem das pinturas como campo da experimentação para criar sua própria linguagem, para citar um exemplo que usa formas parecidas de expressão.

Temos, então, uma forma de expressão cultural e artística que geralmente se utiliza da linguagem de outra como complemento, que é a História em Quadrinhos. Na maior parte delas, encontramos, junto com o desenho, diálogos e parte da narrativa feitos com palavras, que é o elemento principal da Literatura de Ficção.

Antes de nos aprofundarmos nesse uso, gostaria de usar a definição de Quadrinhos de Scott McCloud:

“Quadrinhos são imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador.”

Trecho de “Táxi” (Gustavo Duarte)

Partindo desse pressuposto, temos que uma História em Quadrinhos é feita com imagens e composta de forma a transmitir uma informação. E ela pode ou não se utilizar de palavras. É possível escrever uma HQ inteira e transmitir uma mensagem clara e fácil de ser compreendida sem utilizar palavras, como, por exemplo, Gustavo Duarte fez em Táxi. A palavra-título é uma das poucas que se encontra em todo o gibi. Mesmo em uma história que exija diálogos, é possível escolher outro recurso, como em Bidu, de Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho. Quem já leu (ou viu nossa resenha), notou que eles utilizaram a linguagem corporal e novos desenhos dentro dos balões ao invés de se utilizarem de palavras.

Trecho de “Bidu — Caminhos”, de Eduardo Damasceno e Luís Felipe Garrocho.

Sendo assim, elas se tornam um recurso extra, que pode ou não ser utilizado pelo autor. Não há a obrigatoriedade de se utilizar da palavra no decorrer de uma História em Quadrinhos. O que a diferencia da Literatura de Ficção.

Se a imagem é o fio condutor das HQs, a Literatura é formada de palavras escritas em sequência deliberada de forma a transmitir uma mensagem. Uma história contada em um livro vai se utilizar delas para construir na cabeça do leitor uma cena e fazê-lo dar prosseguimento àquela narrativa. Enquanto em um a palavra escrita é uma escolha, no outro ela já é o tijolinho que constrói o produto.

Já que nos utilizamos das nossas referências para criar algo, podemos esperar o mesmo de escritores, quadrinistas, roteiristas e outros criadores. Tanto que temos aí recriações e adaptações de história de um meio para outro: livro que vira quadrinho, quadrinho que vira filme, filme que vira quadrinho, roteiro que é adaptado para livro… A lista é longa. Com essas adaptações, alguns elementos vão ser mantidos e outros, alterados para se adaptar ao novo meio. Se a gente é capaz de ver um filme e entender aquela cena com imagens em movimento, som, falas, música ambiente, como uma adaptação de uma passagem narrada por conjunto de palavras silenciosas escritas em sequência que tomaram vida quando a gente leu no livro que foi adaptado, a gente é capaz de perceber como cada meio utiliza seus elementos próprios para recriar algo próprio de um outro meio.

No próximo artigo, abordarei outras maneiras como a Literatura e as HQs diferem e como percebemos de formas distintas a apresentação de cada uma. Também falo um pouco de webcomics, que dá um ar novo à arte sequencial.

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Fernanda Eggers
Ideia Transitiva

Jornalista, podcaster, fotógrafa, curiosa e ávida leitora. Sempre buscando novos horizontes.