HQ e Literatura — Próximos, mas diferentes (parte 2 de 2)

Fernanda Eggers
Ideia Transitiva
Published in
6 min readOct 5, 2015

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No meu último artigo, publiquei a primeira parte do material que preparei para a mesa-redonda Quadrinhos: literatura ou artes visuais?, que aconteceu na Funesc no dia 27 de setembro.

Aqui, vou falar de outras diferenças entre HQ e Literatura, além de falar brevemente sobre webcomics e algumas diferenças na recepção que fazemos de HQs e de livros.

Se apropriar de elementos de outros meios de comunicação é algo que acontece de forma muito recorrente principalmente nesses três: HQ, Cinema e Literatura. Da mesma forma que em seu início a fotografia se apropriou de um jeito da pintura de retratar a forma como a luz incide no rosto as pessoas, por exemplo, utilizando obviamente outros mecanismos para conseguir esse efeito, a HQ pode pegar elementos da narrativa literária e utilizar seus próprios mecanismos para conseguir o efeito. Obviamente, não esperamos de um gibi que ele passe um parágrafo descrevendo a angústia de um personagem e finalize com a fala dele. A gente quer ver a angústia bem retratada em um desenho ou uma série de desenhos e, se necessário para entendermos o contexto, a fala espalhada em um ou mais balões, que por vezes também mudam de forma para dar o tom de voz que a situação pede.

Isso já é um diferencial. Já é uma linguagem diferente. Já muda a forma de contar a história, ainda que seja a mesma história. Quem vai criar uma história precisa pensar nos recursos que vai utilizar. Vai seguir uma ordem cronológica? Vai se utilizar de flashbacks? Vai narrar de forma aleatória e dar um jeito de tudo fazer sentido no final? Vai entregar o final e explicar como chegou lá?

Qualquer uma dessas formas pode ser utilizada tanto pela Literatura quanto pelos Quadrinhos, até aqui. No entanto, se o nosso autor resolve contar sua história na forma de um conto em prosa, ele vai buscar recursos linguísticos da escrita para dar o tom da narrativa. Vai se utilizar de um jogo de palavras que julgar apropriado para dar ao leitor a sensação de cada ambiente e cada situação. Vai se preocupar em como transmitir aquela história através das palavras.

Se resolver que isso não é tarefa para um livro e sim para um gibi, a preocupação já não é tanto com o jogo de palavras que será utilizado, e sim em como construir essa gama de sensações através de imagens. Vai pensar em como o leitor vai transitar de uma cena a outra e o que ele vai ver no caminho, em como guiar o olhar do leitor. Ao ler um quadrinho, a primeira coisa que vemos não é o conjunto de palavras nos balões. É o conjunto de imagens na página. Mesmo antes de interpretarmos conscientemente essas imagens, elas já nos transmitem algo, porque são codificadas de forma diferente no nosso cérebro, requerem competências diferentes de nós.

Uma coisa é juntar os “rabiscos” no papel de forma que formem a palavra bola e a pensar: “Ah, bola. Beleza. Conheço isso.” Outra coisa é ter um círculo num papel. Se houver qualquer outra coisa atrelada a isso, como uma sombra, já “batemos o olho” e imediatamente codificamos isso como uma bola. Com a mesma velocidade, identificamos se é uma bola de praia amarela e azul, se houver na imagem detalhes suficientes para isso. Já numa escrita (como esta), tenho elementos completamente diferentes ocupando um tipo diferente de espaço e exigindo um tipo diferente de codificação para que eu diga que a tal bola é uma bola de praia amarela e azul. E a minha bola de praia amarela e azul pode ser completamente diferente da sua, dependendo do tipo de referências que temos, mesmo sendo uma descrição bem específica.

Essa diferença em representar algo tão simples já demonstra a distinção entre uma linguagem e outra, a da palavra escrita e a da representação pictórica. Se adicionarmos um monte de elementos como a palavra ou o desenho em sequência, essa distinção de linguagem se torna ainda mais evidente.

História do Cascão disponível para leitura no site da Turma da Mônica.

Uma forma de comunicação bebe da outra? Claro. E de muitas mais. Há uma integração entre os produtos culturais, principalmente em dois que andam tão próximos. A forma de apresentação de um quadrinho e um livro é parecida. Até pouco tempo atrás, ambos eram encontrados no mesmo suporte: o papel. Hoje já temos e-books e webcomics, mas vamos pensar nos impressos. Ambos são formados aplicando tinta em uma superfície plana e maleável, vêm com uma capa e boa parte dos quadrinhos estão cheias de letras e se utilizando de diversos elementos da literatura. Assim como ela, pode ter diversos gêneros (romance, suspense, comédia, biografia, o que o seu coração desejar) e se utilizar de figuras de linguagem (elipses, hipérboles, ironia, aliteração etc.) para transmitir a mensagem da melhor forma. Inclusive, uma delas é mais comumente encontrada nas HQs do que em outros meios: a onomatopeia. Atire a primeira pedra quem cresceu com Turma da Mônica e não pensa imediatamente no Cascão ao ler um “CABRUM!”.

Se passamos para o formato digital, há um distanciamento ainda maior dessas linguagens. Os livros digitais, em sua essência, continuam parecidos com os irmãos de papel. Ao olharmos para uma página, seja no papel ou num leitor digital, vemos uma massa de palavras, em alguns casos com uma ou outra imagem de apoio. No digital, temos alguns recursos fantásticos como segurar o dedo numa palavra que não conhecemos e a definição dela aparecer, ou acessar uma nota de referência que está lá no final do livro sem ter que ir lá no final, porque a marcação da referência é um link que vai e volta. Dependendo do aparelho ou programa, dá para marcar trechos e anotar coisas no rodapé digital sem pegar uma caneta. A partir do uso, do manuseio, o digital começa a se mostrar diferente do impresso. Mas ainda é uma narrativa escrita através de palavras, ainda é Literatura.

Com a webcomic, que também continua sendo História em Quadrinhos, acontecem outros fenômenos tão interessantes quanto o uso do e-book. Ainda podemos olhar para a tela ou o papel e enxergar o aglomerado de imagens, mas estas podem ser trabalhadas de forma diferente. Dependendo da forma que o autor escolhe trabalhar, o quadrinho digital se distancia de um jeito ainda mais destacado da Literatura. Uma webcomic pode se utilizar, por exemplo, da rolagem da página para revelar a história e trazer elementos novos e surpreendentes de uma forma semelhante ao virar da página, mas sem obrigar o leitor a carregar um novo conjunto de informações no navegador. Isso traz uma diferença porque aquele conjunto é pensado como uma “página” só e pode funcionar muito bem na internet, mas não tão bem assim quando passamos para o meio impresso. Mas a internet — essa coisa maravilhosa — ainda permite o suporte a tipos diferentes de imagens, como o GIF (Graphics Interchange Format). A graça do GIF é que ele permite animações e elas podem ser utilizadas como um diferencial para as webcomics. A técnica pode ser incorporada à linguagem e passar a dar um sentido diversificado para história. Todo um enredo pode ser construído pensando nesse detalhe da imagem que se mexe como um elemento a mais, assim como a forma de desenhar o cenário para passar a sensação X ou Y. Um exemplo disso é Bear, de Bianca Pinheiro, que usa o recurso de uma forma bem perspicaz.

Freebie: wallpaper de Bear, disponível no site da webcomic.

Então, se no impresso já existem diferenças no processo de criação e de produção de cada tipo de produto cultural — o livro ou a HQ — que marcam a diferença entre cada forma de arte, no digital surgem novos elementos para destacar isso ainda mais.

Por conta de toda a bagagem cultural que trazemos e que repassamos ao criar algo, mesmo que seja algo como repetir um conto de fadas (que cada um fará de um jeito muito próprio); um meio de comunicação vai, sim, se apropriar de elementos de outro. Também pode alterar esse elemento, ressignificar, editar, transcrever e adaptar para caber dentro de si.

Sendo assim, mais importantes que as semelhanças, são as diferenças que fazem de uma HQ, uma HQ e de um livro, um livro. O mesmo pode ser pensado e aplicado para outras formas de comunicação, como a pintura e a fotografia, outros nichos das artes visuais e com as quais comecei a minha narrativa.

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Fernanda Eggers
Ideia Transitiva

Jornalista, podcaster, fotógrafa, curiosa e ávida leitora. Sempre buscando novos horizontes.