Noite(s) na Taverna — Álvares de Azevedo (e outros quadrinistas)

Allana Dilene
Ideia Transitiva
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5 min readAug 30, 2015

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Publicado originalmente em 1855, Noite na Taverna é um dos grandes representantes do chamado ultra-romantismo brasileiro, com características herdadas do movimento cultural europeu, e aquele imagético tão caro aos escritores românticos: bebida, orgias, diversas referências a outros textos e escritores, e as mulheres pálidas à luz do luar, desfalecidas, de amores impossíveis, flertando com o romance gótico inglês.

https://www.youtube.com/watch?v=9DO9ssgLkfo&feature=youtu.be

Como vários dos personagens românticos, Álvares de Azevedo morreu muito jovem, aos 21 anos, e toda sua obra foi publicada postumamente. O pouco tempo que teve para trabalhar em seus textos resultou em escritos por vezes considerados pela crítica imaturos ou inconsistentes, embora muito provavelmente eles tenham sido publicados sem revisão do próprio jovem, ou talvez com interferências alheias dos editores à época.

No ensaio A educação pela noite, Antonio Candido defende que o livro Noite na Taverna seria, na verdade, uma espécie de continuação da peça Macário, também assinada por Álvares de Azevedo. Quando se leem as duas obras em sequência, essa colocação se mostra tão acertada a ponto de que algumas versões da coletânea trazem, como prefácio, não apenas esse ensaio, mas o trecho abaixo.

MACÁRIO
Onde me levas?
SATÃ
A uma orgia. Vais ler uma página da vida, cheia de sangue e de vinho-que importa?
MACÁRIO
É aqui, não? Ouço vociferar a saturnal lá dentro.
SATÃ
Paremos aqui. Espia nessa janela.
MACÁRIO
Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas, umas lívidas, outras vermelhas… Que noite!
SATÃ
Que vida! não é assim? Pois bem! escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra.O vinho é como o ópio, é o Letes do esquecimento…A embriaguez é como a morte. . .
MACÁRIO
Cala-te. Ouçamos.

NOITE NA TAVERNA
How now, Horatio? you tremble, and look pale. Is not this something more than fantasy? What think you on’s?
Hamlet. Ato I

UMA NOITE DO SÉCULO

Bebamos! nem um canto de saudade! Morrem na embriaguez da vida as cores! Que importam sonhos, ilusões desfeitas? Fenecem como as flores!
José Bonifácio

— Silêncio, moços!! Acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos? Não sentis que o sono da embriaguez pesa negro naquelas pálpebras onde a beleza sigilou os olhares da volúpia??

Tal mistura de gêneros seria, de acordo com o estudioso, tanto consequência da ideia do gênio individual — a criação artística independente e produto do indivíduo — como também uma herança do pensamento da chamada primeira geração romântica, que lutava para encontrar uma voz nacional na literatura. Admito que, quando de minha primeira leitura, fiquei deveras impressionada com essa leitura de Candido. Não que histórias diferentes possam se interligar, mas que uma peça dramática servisse como uma introdução para uma coletânea de contos, bem, ainda me soa com um quê de inovador. E, claro, peguei-me pensando: o que o jovem Macário pensaria após os relatos que ouviu nesta noite?

Noite na Taverna segue com cada um dos ébrios convivas contando um fato de seu passado. Histórias imersas nesse imagético do jovem sofredor, que se perdeu de amores por uma ou várias mulheres, levando assim uma vida desregrada e sem perspectiva de um futuro. Os nomes dos jovens intitulam os contos seguintes: Solfieri, Bertram, Gennaro, Claudius Hermann e Johann, encerrando a coletânea com Último Beijo de Amor. Todos relatam feitos terríveis que cometeram, enlouquecidos pelos vícios de jogos, bebidas, ou movidos por amores incontroláveis. Histórias embriagadas nas imagens de mulheres desfalecidas em tecidos diáfanos sem, no entanto, eximir os responsáveis de seus atos de incesto, necrofilia, traição e violência sexual e psicológica. Ao final, um dos casos contados traz consequências, e, como se pode pensar, encontramos um fim digno de Romeu e Julieta.

Minha mente de adolescente-quase-adulta, absorta no imaginário do spleen, dos contos de Edgar Allan Poe, de alcovas escuras e crimes confessados era especialmente afeita ao imaginário suscitado pelo texto de Álvares de Azevedo. A bem da verdade, ainda é (embora, esperançosamente, um tanto mais madura). Mas não dá para não reconhecer a dualidade feminina reproduzida, de “santa/demônio” e não me sentir incomodada; a naturalidade com que os interlocutores narrativos aceitam atos como drogar mulheres para abusarem delas, entre outros atos terríveis. Por outro lado, também não posso dissociar a obra do seu contexto de produção, já explanado neste breve texto.

Mais recentemente, Noite na Taverna ganhou uma adaptação como história em quadrinhos, por Carlos Patati, com arte de Marcio de Castro, Eduardo Arruda, Klayton Luz, LuCAS e Klaus Reis, e publicado pela Difusão Cultural do Livro. Como necessário, o texto de Álvares de Azevedo teve mudanças — as várias referências às mitologias, a outras obras literárias foram retiradas para priorizar a construção do ambiente e do imaginário escuro, carregado de linhas e rachuras. Uma decisão muito acertada; se o texto fosse mantido literalmente, estaríamos diante de uma história ilustrada, e não uma adaptação, afinal. O figurino, a pouca iluminação e a as donzelas pálidas de faces vermelhas foram elementos bem reconstituídos e aproveitados em quase todas as histórias. A única exceção que salta aos olhos é a adaptação do conto Bertram, em que o traço limpo de Klayton Luz não casou com o tom do conto mais complexo e interpolado da coletânea.

Ainda sobre Bertram, também me pareceu uma exceção em relação aos outros textos adaptados. Provavelmente em uma tentativa de simplificar a narrativa que alterna repetidas vezes entre o ambiente da taverna e as viagens do narrador, essas passagens não foram feitas. Uma pena, pois seria uma ótima oportunidade de usar a linguagem dos quadrinhos para construir um véu de sonho, de um narrador dúbio que passou por várias experiências de quase morte e, ébrio pelo vinho, mal consegue distinguir realidade e reminiscências.

Ambas as publicações guardam lugares cativos na minha estante, embora algum conhecimento de contexto seja necessário não apenas para compreender o imaginário envolvido na geração romântica “mal-do-século”, como consta ainda em alguns manuais de literatura escolares, mas entendê-la como produto de sua época e de um jovem escritor que mal teve tempo de revisá-la. O que não impede, claro, que sejam textos analisados, problematizados e discutidos.

EDIT: Após redigido esse post, soube que a Editora Ática também tem uma adaptação de Noite na Taverna para quadrinhos, pela qual procurarei incansavelmente, enfrentarei duelos, até encontrá-la. :D

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Allana Dilene
Ideia Transitiva

Mulher da altura de uma espada larga, leitora ávida, aspirante a muitas coisas.