O Rei Amarelo em Quadrinhos — Resenha

Allana Dilene
Ideia Transitiva
Published in
8 min readMar 11, 2016

No nosso canal, você pode conferir a vídeo-resenha minha e de Eloísa. Mas se você é daqueles que preferem ler a assistir vídeos, não tem problema. Aqui, você pode ter os dois. ;D

A primeira coisa que se precisa ter em mente é que a coletânea, organizada por Raphael Fernandes e publicada pela Editora Draco, não é uma adaptação das histórias de Chambers, mas sim novas histórias inspiradas. Isso serve tanto para o leitor de literatura não achar que vai ter um “mais do mesmo”, quanto para o habitual leitor de quadrinhos, que não vai encontrar uma versão em HQ da obra.

O impresso é uma edição muito bem cuidada, com capa de verniz localizado em alguns pontos, papel couché e capa cartonada. A proposta da coletânea era que as histórias fossem pensadas em 3 cores — preto, branco e amarelo — e alguns dos textos fazem um uso mais expressivo e criativo disso do que outros. E para ser honesta, é uma das poucas coletâneas que li em que posso considerar todos os textos bons, embora uns tenham me agradado mais do que outros. Isso denota não apenas um cuidado da organização, mas um avanço na produção de quadrinhos nacional.

A primeira história é a Fantasmas na máquina, com arte e roteiro de Pedro Pedrada. A história dialoga com o hábito cada vez mais presente na nossa sociedade de expor nossas vidas em redes sociais, com a facilidade da hiperconectividade através dos vários aparelhos. A protagonista da história, uma modelo fotográfica e de desenho, no que parece ser um diálogo inteligente com um dos contos de Chambers que tem como personagem uma modelo de um pintor, não consegue conviver com as diferenças entre a sua persona virtual e aquela que é.

A arte de Pedro consegue se casar de maneira muito natural com o tema, com a personagem muitas vezes ganhando tons cadavéricos e assustadores. O uso do amarelo no quadrinho mantém essa conexão da protagonista com a tecnologia, e com uma entidade que habita a rede e a leva a um declive de loucura. No entanto, esse tema da pessoa que se perde para a sua persona anda tão em voga que, apesar de atual, não é exatamente original, de forma que não está entre as histórias que mais me agradou.

Arte e roteiro de Pedro Pedrada

A segunda, Boneca, conta com roteiro de Tiago P. Zanetic e arte de Lucas Chewie. No que parece ser a proposta mais distante do livro de Chambers, é um dos textos que mais aspira originalidade. Em uma comunidade amish isolada nos Estados Unidos, um líder religioso se vê tentado pela boneca que sua filha recém-nascida ganha de presente. A boneca, sem olhos ou boca, promete não apenas o paraíso, mas que a desgraça cairá sobre seus fiéis caso o pastor não siga seus desígnios.

A arte de LuCAS é cuidadosamente detalhada, e há vários pequenos elementos que fazem o leitor questionar a veracidade dos fatos narrados. O uso do amarelo nesse texto em específico é excelente, com um pontilhado que passa a ideia como de uma praga que se espalha pelo ar e contamina as plantações, ou como o germe da loucura na qual espirala o protagonista.

Arte de Lucas Chewie, roteito de Tiago P. Zanetic

A terceira história é A rainha de amarelo, com roteiro de Maurício Campos, e arte de Péricles Ianuch. Essa história tem como protagonista Edgar Allan Poe, uma paixonite literária pessoal que permitiu uma identificação imediata. Poe, após desmascarar um falso autômato — fato verídico, conforme artigo publicado pelo autor ainda em vida — encontra um outro autômato, esse um escritor, e logo se vê envolvido em uma trama cósmica envolvendo sua esposa e amada, Virgínia, e ele mesmo.

A história faz ligações muito interessantes com a vida e a obra de Poe, além de outros escritores de horror, como H. P. Lovecraft, tudo costurado de maneira inteligente e cuidadosa. A arte soube pegar bem esse espírito, além de fazer uma versão estilizada de Poe que consegue remeter às várias ilustrações do autor, mas ainda guardar um quê de expressividade pessoal. Acho que a presença de um texto assim na coletânea é essencial especialmente para o leitor de literatura de horror/terror mas novato em HQs, que poderá se sentir mais confortável vendo em uso suas influências anteriores.

Roteiro de Maurício Campos, arte de Péricles Ianuch

A quarta história, Maldita Rotina, tem o roteiro de Airton Marinho e a arte de Marcos Caldas. Um advogado que está ajudando a fechar uma empresa tem acesso a um livro-caixa do lugar, e quando o abre, para averiguar a situação, fica obcecado pela leitura e não consegue largá-lo. Aos poucos, o livro vai demandando a sanidade do protagonista, que se perde em atos de violência extrema.

Apenas enquanto escrevo a sinopse posso fazer a relação, agora óbvia, com a parcela de sanidade que a vida cotidiana, de prazos, trabalhos e interesses outros consegue tirar da pessoa comum — o que, admito, dá um ar mais interessante à história. Por seguir a fórmula recorrente nos contos de Chambers — pessoa encontra livro e isso a leva à loucura — não tinha ficado especialmente impressionada. A arte também não impressiona, especialmente se comparada às outras histórias da coletânea, mas o uso do amarelo é especialmente inteligente nessa história.

Roteiro de Airton Marinho, arte de Marcos Caldas

O quinto texto, Caninos, tem o roteiro de Erik Avilez e a arte de André Freitas. A história faz um intertexto claro com contos de fada ocidentais, embora em sua versão mais sombria. Duas irmãs estão saindo de uma cabana nas bordas da floresta para levar comida para a avó, que mora em outro ponto do bosque. Mas não demora ao leitor perceber que há outras coisas em movimento, como um passado doloroso envolvendo as irmãs e a família.

A história começa com uma dissonância deliciosa entre texto em recordatório e imagem, o que, apesar de não ser um recurso exatamente original, sempre dá um tom interessantíssimo de ironia. O trabalho narrativo, porém, não parece manter a mesma qualidade, de modo que o desfecho da HQ me soou quebrado. A arte tem momentos muito inspirados, mas por vezes passa a impressão que as expressões dos personagens poderiam ser mais efetivas.

Numa digitalização que arruinou a lua amarela, arte de André Freitas e roteiro de Erik Avilez.

O sexto texto, O rei dos ratos, tem o roteiro de Tiago Rech e arte de Victor Freundt. Conta a história de um homem jovem, cuja filha acaba de nascer, chegando atrasado no trabalho, e por isso condenado a investigar um navio que acabou de chegar ao porto. O estranho é que navio está em estado lastimável, e nenhum membro da tripulação chegou a desembarcar. A revelação do que aconteceu com o lugar leva o homem à loucura.

Além de seguir a mesma fórmula dos contos de Chambers, essa foi uma das histórias que agrada mais pela arte do que pelo texto. Os olhos esbugalhados, os traços fortes e grossos lembram vagamente as histórias de Crumb, mas a ideia de uma peste de roedores em um navio e como uma entidade cósmica enlouqueceu a tripulação não é um dos pontos altos da coletânea.

Roteiro de Tiago Rech e arte de Victor Freundt

Taxidermia Anímica, com roteiro de Rafael Levi e arte de Samuel Bono, é a penúltima história da coletêna. Aqui os diálogos com o livro de Chambers são mais claros. Um assistente de um taxidermista, aspirante a ator, recebe o convite para participar de uma execução da peça O Rei de Amarelo, e a leitura do texto conecta ele e a sua namorada, a filha do seu patrão, a entidades cósmicas além da compreensão sã.

Enquanto a arte é muito inspirada e genuinamente diferente das outras encontradas na coletânea, a história parece desnecessariamente difícil e cansativa. Tanto a óbvia relação com o texto literário pode cansar o leitor que esperava mais, quanto o excesso de loucura representado nos diálogos deixam o texto mais desafiador, embora não de um jeito instigante.

Roteiro de Rafael Levi e arte de Samuel Bono

O último e o meu preferido é Medíocre, com arte e roteiro de Raphael Salimena. Nessa história cujo título não deve deixar enganar, um crítico literário está revoltado com a reação de histeria coletiva que um recente best-seller está causando nas pessoas. Ele, que leu o livro, não percebeu nada demais no texto, e pretende publicar uma resenha estragando o livro, até que ele consegue perceber de fato a futilidade da sua profissão.

Apesar da referência óbvia à obra de Chambers, a escolha da história de fazer um diálogo com os “influenciadores de opinião” leva o texto por uma vertente muito original e, no caso desta que vos escreve, permitindo uma relação imediata. A maneira metalinguística que o autor trata a produção cultural — um produto “de massa” falando das relações entre conteúdo e público — escancara a ironia da situação de maneira muito inteligente. Um texto fabuloso, que parece fazer até uma crítica aos carnavais tão comuns da cultura brasileira.

Arte e roteiro de Raphael Salimena

Em resumo, O Rei Amarelo é uma HQ nacional de horror de alta qualidade, com ótimos artistas e histórias que narram, das mais diferentes maneiras, decadentes espirais de loucura. Trazendo um novo fôlego ao texto clássico de Chambers, a publicação também desfaz os preconceitos a respeito das publicações nacionais em quadrinhos, deixando claro que é um ramo em pleno desenvolvimento, com ótimas vozes pedindo para serem lidas e divulgadas. E se você aprecia o gênero, fique ligado que não deve demorar para que os leitores sejam brindados com uma nova coletânea de horror, dessa vez inspirada no mythos de H. P. Lovecraft.

O Rei Amarelo pode ser adquirido diretamente no site da Editora Draco (aqui!) ou em lojas virtuais como a Amazon.

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Allana Dilene
Ideia Transitiva

Mulher da altura de uma espada larga, leitora ávida, aspirante a muitas coisas.