Passeando na trilha de Umberto Eco — 2/3

Allana Dilene
Ideia Transitiva
Published in
3 min readAug 24, 2015

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Nos segundo e terceiro passeios, Umberto Eco nos leva a pensar em como o tempo se estabelece nas obras de ficção. Tentarei, com minhas palavras, falar um pouco disso no texto de hoje.

Todo texto narrativo tem uma história — ele conta alguma coisa. Essa é a parte fácil. Essa história ela tem um tempo próprio: minutos, horas, anos, séculos, milênios. Um evento pode levar dias para acontecer, mas, ao recontar, você não vai levar o mesmo tempo, esperançosamente. Um conto de poucas páginas pode passar anos de determinada linha temporal, enquanto que um calhamaço de 500 páginas pode contar os eventos de três dias. Esse é o tempo da história, e ele pode ser, normalmente, medido com certa facilidade.

Esse tempo, porém, pode ser recortado e representado de várias formas diferentes. Eco não utiliza esse termo, mas considero ele bem explicativo — tempo psicológico, aquele filtrado pela vivência de determinado personagem. Aqui, o texto se deixa contaminar, e esse estabelecimento de ordem causal, tão caro à ficção e a leitores críticos, pode se tornar bem difícil de rastrear.

Essa passagem de tempo pode ser representada de várias formas diferentes: cortes de uma cena para outra, para tomar emprestado termos do cinema; introdução de recordatórios nas histórias em quadrinhos, com o famoso “Enquanto isso…”; passagens mais secas, com indicações como “Anos depois…”; ou, simplesmente, deixar que um personagem se confunda em suas lembranças ou experiências. Estamos, agora, no tempo do discurso.

Digamos que você encontra um amigo que não vê há muito tempo, e conseguem colocar o “assunto em dia”. Você vai resumir e omitir fatos, assim como espera que ele o faça, e “passe por cima” de eventos que considerar pouco importantes. Uma experiência mais marcante, porém, tomará mais tempo de sua conversa. É natural que você dê mais atenção a detalhes, que considere outras coisas, que compartilhe seus pensamentos sobre a situação narrada. O seu discurso, ou, a sua maneira de contar, vai fazer com que o tempo pareça avançar mais rápido ou devagar.

Gosto sempre de pensar em filmes para falar em tempo e suas representações. Você já esteve em um filme particularmente moroso, que, com apenas meia hora, dava a sensação de ter passado a tarde inteira? E a relação contrária: um filme que se passa tão rápido que mal parece ter duas horas? Físicos vão falar de relatividade do tempo, e vão estar certos. Mas para essa conversa, prefiro falar em velocidade narrativa.

E o tempo, essa categoria, tão amplamente estudada, é uma das mais inapreensíveis para nós, pessoas de carne. Quantificamos, dividimos, organizamos, planejamos o nosso tempo, mas não o vemos, embora possamos testemunhar seus efeitos sem dificuldade — no corpo, no espaço, na sociedade. E nos textos que conseguem resistir a ele, como o ensaio de Poe, A filosofia da composição (ele, mais uma vez) mencionado por Umberto Eco. Como prova do autor-modelo do texto anterior, ele parafraseia a análise do americano Edgar Allan Poe do poema de sua autoria, O Corvo.

Esse exemplo, porém, leva-me a pensar mais em como tomamos esses mecanismos de representação como internalizados e garantidos e não pensamos deliberadamente sobre eles. Essa problematização é o mais saboroso nesses ensaios-palestras de Umberto Eco. Por mais que autores empíricos, esses seres tão pouco interessantes, pensem deliberadamente sobre suas estratégias de composição de um texto, há aquelas coisas que simplesmente acontecem sem que eles percebam. E isso não interessa para a leitura posterior de uma obra, é verdade — a sua intenção se perde depois que outros passam a ler seu texto, e a leitura desses outros serão responsáveis pelo significado completo daquela obra. Mas isso, para mim, corrobora justamente a ideia de estratégias internalizadas de construção de textos, e menos a ideia de um autor-modelo, já mencionado no texto anterior.

Até o próximo passeio. ;)

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Allana Dilene
Ideia Transitiva

Mulher da altura de uma espada larga, leitora ávida, aspirante a muitas coisas.