Daniel Blake e a crise do capitalismo

O que os 8 homens mais ricos do mundo têm a ver com isso?

bruna provazi
Ideia Errada
5 min readJan 20, 2017

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Foto: Divulgação (“I, Daniel Blake”).

Essa semana finalmente fui assistir “Eu, Daniel Blake”. Ao sair do cinema, um pedinte, negro e bem jovem, de joelhos, erguia os braços ao alto, batalhando por seus trocados por entre o público que passava. Ao entrar no metrô, dei de cara com um banner: “Oportunidade para todos”. Na imagem, um cadeirante branco, bem vestido e sorridente. “Todos quem?”, me perguntei, pensando que essa cena era um bom resumo do filme.

Após sofrer um AVC e quase cair de um andaime, o carpinteiro britânico de 59 anos Daniel Blake é colocado de licença médica. Meses depois, recebe um diagnóstico da equipe de saúde avaliando-o como inapto para voltar ao trabalho. Ele tenta recorrer da decisão, mas é engolido pelos tentáculos eletrônicos de um sistema automatizadamente desumano. Resta a Blake então tentar acessar o Subsídio de Emprego e Apoio, direito trabalhista oferecido pelo governo britânico. Entretanto, tal como Tom Hanks em “O Terminal”, o protagonista então é jogado em um limbo de burocracia e ineficiência de um falido estado de bem-estar social: para ter acesso ao benefício, ele precisa comprovar que está buscando trabalho, porém, se voltar a trabalhar, estará colocando sua vida em risco.

Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2016, o filme é escrito Paul Laverty e dirigido por Ken Loach, autor conhecido por tratar das condições de vida da classe operária da Grã-Bretanha, revelando cenários de miséria e de destruição das políticas públicas sociais. Aos 80 anos, com uma extensa filmografia no currículo, Loach tem entre seus trabalhos recentes os premiados “Ventos da Liberdade” (“Route Irish”, 2010) e “Jimmy’s Hall” (2014).

Em “Eu, Daniel Blake”, além do tema central da falência das políticas de bem-estar social e da burocracia moderna, fica explícito também como a pobreza atinge de diferentes formas homens e mulheres. Em suas idas e vindas em busca do benefício trabalhista, Blake conhece Katie (Hayley Squires), mãe solteira de duas crianças recém-chegada na cidade e que também passará por seu calvário pessoal na luta para dar uma vida digna a seus filhos. Com uma diferença fundamental: como afirma a autora italiana Silvia Federici, “o corpo das mulheres é a última fronteira do capitalismo”. Já deu pra imaginar o que isso significa, né?

Outro aspecto interessante explorado pelo filme é a exclusão digital. Blake é um exímio profissional da carpintaria, mas quando se vê diante de “sofisticados” aparatos tecnológicos como um mouse ou um aparelho celular, acaba se revelando um matuto digital. Verdadeiro tapa na cara da geração de revolucionários(as) de Facebook. Soma-se a isso a questão da pobreza energética, termo pouco utilizado por nós, habitantes de terras quentes, mas uma questão da ordem do dia nos países do Norte, em que a falta de calefação vitima a população mais pobre diuturnamente.

Foto: Divulgação (“I, Daniel Blake”).

Nesta semana, a ONG britânica Oxfam divulgou uma pesquisa mostrando que os 8 homens mais ricos do mundo detêm, juntos, mais dinheiro que a metade mais pobre da população — e não preciso nem dizer aqui a cor e a identidade de gênero desses caras. No topo da lista temos Bill Gates, bilionário criador da Microsoft. Mas não encontrei na planilha os já não tão bem remunerados extratores de tântalo da República Democrática do Congo, matéria-prima utilizada para produção de computadores, tabletes e aparelhos celulares, que gerarão milhões de views para o Facebook, empresa do jovem mega-empreendedor Mark Zuckerberg, o sexto da lista da Oxfam… Em segundo lugar na lista dos bis, temos o espanhol Amancio Ortega, fundador da Inditex e da Zara — sim, aquela flagrada usando mão de obra escrava, aliás, qual delas não usa?

A pesquisa não é surpreendente, visto que vivemos em um mundo profundamente desigual, entretanto, ela ajuda a escancarar algumas contradições de um sistema que, além de ser imoral, não se sustenta, porque não é compatível com a vida humana. A exclusão social não é mera coincidência, senão a razão de ser do capitalismo. Em outras palavras: não existe capitalismo sem desigualdade social, pois é através da exploração do trabalho assalariado de muitos que é gerada a riqueza concentrada nas mãos de tão poucos. E é na outra ponta do iceberg, seja no Congo ou na Inglaterra, que se afogam diariamente tantos Daniel Blakes.

Intervenção feita pelo artista Eduardo Relero em frente a uma loja da Apple na Espanha, em protesto à utilização de mão-de-obra infantil para extração de minérios na República Democrática do Congo.

Trazendo pro lado de cá da ponte, é preciso enxergar que a crise econômica brasileira tem menos a ver com os malfeitos do Partido dos Trabalhadores do que com um período de recessão mundial, que atinge os países das mais diferentes formas, da Grécia à Espanha, da Venezuela aos Estados Unidos.

O Brasil dos últimos anos viveu uma época de crescimento econômico, o que possibilitou o investimento em políticas sociais, das quais seu resultado mais importante talvez tenha sido tirar nosso país do mapa da fome. As desigualdades estão aí, dormindo ao relento em nossa porta, entretanto, demos passos gigantes no combate à miséria. Sem falar nas cotas raciais, que começaram a mudar a cor de nossas sempre tão elitistas universidades. Agora vemos essas conquistas se desmoronarem dia após dia no Brasil pós-golpe, cujo maior símbolo até agora talvez tenha sido o cruel aumento da idade para aposentadoria. Sobretudo, é preciso enxergar que, em tempos de crise, os ricos farão de tudo para continuarem ricos, às custas de muito arrocho para os mais pobres, afinal de contas, a conta do impeachment uma hora iria chegar.

Vivemos um cenário geral de crise do capitalismo, e o mundo todo parece estar apostando em falsas soluções: do chamado “Brexit” (saída da Inglaterra da União Europeia), ocorrido posteriormente à produção do filme, à ascensão de Donald Trump nos Estados Unidos, ou mesmo à ameaça de que a extrema-direita eleja Marine Le Pen na França. Já no Brasil, as consequências do golpe de estado se aprofundam, colocando em prática, à velocidade da luz, as medidas anti-povo do governo ilegítimo.

É nesse sentido que “Eu, Daniel Blake” nos ajuda a ampliar um pouco o horizonte. Sem maiores inovações de linguagem e seguindo os passos da narrativa clássica, o grande mérito do filme está em lançar luz sobre um tema urgente, com um trabalho que traz humanidade, olhos marejados e um final arrebatador. Já o nosso desfecho por aqui dependerá de algo mais que domínio cinematográfico.

Bruna Provazi é jornalista pela UFJF, mestra em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, feminista e geminiana. Atua com marketing digital e audiovisual e é idealizadora do blog Ideia Errada.

Assista ao trailer.

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